terça-feira, 8 de setembro de 2015

REFORMA DA IGREJA


Padre Venâncio andava às voltas com a reforma da igreja de sua paróquia lá em Porteira Quebrada. Do povinho do lugar, gente muito pobre, chegavam adjutórios minguados. E a obra se arrastava há mais de dois anos. O Coronel Miguel Ferrão, fazendeiro de muitas posses,  era o pai da miséria e ajudava, diga-se a verdade, mas em quantia infinitamente inferior às suas possibilidades. Bem que o Padre Venâncio se esforçava, mas daquela moita saía pouco coelho.
            Uma boca de noite de sábado, quando o vigário investia em mais uma tentativa de arranjar subsídios para tocar a sua obra, o Ferrão, após umas duas bicadas na sua cachaça preferida, o que lhe sobressaía a excentricidade, prometeu que arranjaria a verba necessária para a conclusão da reforma. Mas impunha uma condição:
            - Só libero o dinheiro se me forem respondidas três perguntas. Pode vir cá domingo à noite. Se acertar as respostas, libero na hora o suficiente para concluir a obra.
            O padre retornou à casa paroquial abatido. Sabia que era impossível responder às três perguntas que lhe seriam apresentadas na hora. Comentou com o sacristão Jesuíno a sua tristeza. Este, cujo biotipo era semelhante ao do padre, assumiu a responsabilidade da empreitada.
            - Deixa comigo, Padre Venâncio. Vou tentar resolver isto.
            Chegada a noite do domingo, o sacristão vestido de batina e barrete,  introduziu umas mechas de algodão nas bochechas para imitar a voz meio dificultosa do padre e dirigiu-se à casa do Miguel Ferrão. A noite era negra e os candeeiros apenas disfarçavam o breu do desenluarado do lugar. E a primeira pergunta foi apresentada pelo Coronel:
            - Padre, onde se localiza o meio da terra?
            O Jesuíno caminhou uns dez ou quinze passos, apontou para uma pequena pedra incrustada na terra e sentenciou:
            - Aqui, Coronel, exatamente neste lugar.
            - Então prova a sua afirmativa.
            E o Jesuíno com voz decidida.
            - Pode medir, Coronel, se é que o Senhor duvida.
            O Ferrão, sem outra alternativa, liberou a segunda pergunta:
            - Quantas estrelas há no céu, Padre Venâncio?
            A resposta veio pausada, mas com firmeza:
            - Seis trilhões, duzentos e doze milhões, seiscentos e quatro mil e cento e doze estrelas. E já vou adiantando: se o Senhor duvida pode começar a contar.
            O Ferrão ficou meio desconsertado mas pensou com seus botões: agora eu acabo com a esperteza dele. E mandou a última pergunta:
            - Agora eu quero saber o que é que eu estou pensando.
            O sacristão, desvestindo-se do barrete e cuspindo fora as mechas de algodão, chegou o candeeiro próximo à sua própria face e desembuchou:
            - O Senhor está pensando que eu sou o Padre Venâncio. Entretanto, como o Senhor vê, eu sou o sacristão.

            Dizem que a igreja continua lá em Porteira Quebrada, firme e forte após as reformas pelas quais passou.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

            
ALMA PENADA





A data? Não sei ao certo. Eram aqueles anos antigos, talvez princípio do Século passado. Precisar não interessa. Mané Prego era noivo da Bertonilda. Até aí nada errado. Só que ela morava logo atrás do cemitério da Vila de São Clemente. E era para lá que ele se dirigia toda noite para se desincumbir de suas funções de noivo apaixonado. Retornava antes das vinte e duas horas e ia se encontrar com os companheiros no boteco do Zé Bode para tomar umas e outras antes de recolher-se para o descanso do dia. A turma, os mesmos três – Praxedes, Muriçoca e Caixa d’Água - o esperavam para um bate papo e uns goles. Admiravam o Prego por ele não ter receio de passar pelas imediações do cemitério, sem qualquer iluminação e àquelas horas. O Mané se ria e zombava do temor dos colegas:
            - Medo de quê? Defunto não ofende ninguém. Alma, se é que há, já subiu ou desceu. Não vai ficar aqui amolando os outros.
            Uma noite, antes da chegada do Prego, os três companheiros combinaram passar-lhe um susto. Na noite seguinte, esperariam o companheiro numas moitas que circundavam o campo santo e, vestidos de lençóis branco, haveriam de pô-lo a correr. Queriam ver se ele era mesmo o valente que demonstrava ser.
            Se assim pensaram, assim executaram a ideia. Por volta das nove horas lá estavam eles, agachados sob os arbustos aguardando a hora de chegada da vítima. Foi aí que o Caixa d’Água, virando-se para trás, observou:
            - Quantos nós somos mesmo? Três ou quatro?
  - Três, respondeu o Muriçoca. Você, Praxedes e eu.
  - Então conta aí! Um, dois, três, quatro.

E a carreira desembestada da turma, morro abaixo, aos trambolhões pela vegetação rasteira. Chegaram apavorados ao boteco do Zé Bode, já despidos da roupagem assombradeira. E, mais atrás, o Mané Prego, em pessoa, que ouvira a combinação dos companheiros na noite anterior e se misturara no meio, também envolto num lençol branco,  para ver o desfecho da encrenca aprontada pelos seus amigos.