quinta-feira, 17 de janeiro de 2019


A EXTREMA-UNÇÃO

            Padre Bertoldo pastoreava as almas humildes de São João das Cabaças. Residia num sítio de cerca de dois alqueires nas adjacências do lugar, propriedade que lhe foi doada por uma beata abastada. Tinha uma vida tranquila, já que o serviço da paróquia era resumido e a vida bucólica que levava era de seu agrado, tendo em vista sua origem rural.
            Entretanto, de uns meses para cá, passou a ter aborrecimentos em sua propriedade bem cuidada. É que uma capivara invadia de quando em vez seu quintal, provocando estragos, destruindo suas bem cuidadas plantações. Combinou com um paroquiano, o Tatão Filóquio, incumbindo-o de dar sumiço no bicho. Tatão era conhecido por apreciar caçadas regadas a muita cachaça e farofas variadas.
            Naquele início de noite chega o Tatão para descapivarar a propriedade do vigário. Capanga de lado com a branquinha de sua preferência e a lata dos comes acompanhando. Conversa vai, conversa vem, ficou combinado que o pároco também participaria da tocaia, com uma espingardinha velha, chumbeira, herança de seu avô. Os preparativos foram interrompidos pela batida de alguém à porta. Era o Percildo, requisitando a presença do religioso com urgência para encomendar a alma de Dona Hermengarda, sua sogra que, segundo informara, estava nas últimas, em sua casinha na entrada da cidade. Aborrecido, relutou. Entretanto a consciência falou mais alto. Era preciso levar o sacramento à candidata a defunta. Deixou lá o Filóquio e foi cuidar de sua obrigação.
            Na casa da moribunda, aflito, teve que esperar um pouco até que desocupassem o quarto onde ela se encontrava, tendo em vista que Dona Caetana preparava a doente, higienizando-a para a recepção ao religioso. A cabeça do vigário estava lá, no seu sítio, sonhando com a exterminação da capivara. Percebeu, que apesar de ter uma alma bondosa e mansa, passara a manter um ranço, uma ojeriza pelas capivaras, que chegava mesmo às raias do ódio. Seu corpo estava na sala da enferma, mas seu espírito estava de tocaia ao animal, juntamente com o Tatão.
            Liberado o quartinho, penetrou o vigário para cumprir o seu dever de pastor.  Desovou as primeiras orações. Seu espírito continuava de tocaia no brejo de sua propriedade, ao lado do caçador. Nisto ouviu-se, ao longe, o estampido de um tiro. O som viera dos lados de seu sítio. Seria o tiro do Tatão. Ainda orando e benzendo a doente, passou a liberar o que invadia o seu espírito anticapivarístico:
            - Morre, desgraçada! Vai para o quinto dos infernos! Pra deixar de ser besta!
            E traçava no ar a mão em forma de cruz ante o corpo da enferma, ainda vociferando:
            - Morre, excomungada! Morre logo, praga ruim! Nunca mais vai comer às minhas custas!
            Voltou a si quando foi arrastado e expulso pelos familiares da doente. Nenhuma explicação posterior justificou seu ato. A doente faleceu naquela mesma noite e deixou uma desconfiança de seu procedimento junto aos familiares.
            A capivara continua lá. O Filóquio errou a mão na cachaça e no tiro. 



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