NEM EU NEM VOCÊ
Panicácio
Gurjão era um tipo coronelão, tradicionalista. Tinha uma filha muito bonita, a
Miralva, pretendida pela rapaziada importante de Capoeira do Jacu. Balduíno era
um deles. Admirava a menina desde os tempos de escola, quando estudaram juntos
no Ginásio Capistrano Brandão. O problema era que a menina era guardada a sete
chaves pelo pai, e era difícil um espaço de liberdade para uma conversa mais
enluarada. Ainda assim, o Balduíno conseguiu, na calada da praça principal,
apresentar-lhe uma proposta de namoro, que a princípio não foi rejeitada nem
aceita.
Uma semana
depois, chegou da capital o Ponciano Pangola, recém-formado em Direito, que se
interessou pela Miralva, e acabou tendo a preferência da donzela. Balduíno
cuspiu revoadas de marimbondos e passou a arquitetar um plano. Sua mente
amiudada trabalhava noite e dia.
O Ponciano,
com seus trajes finos e com diploma de doutor, acabou firmando um princípio de
namoro, bem encaminhado. O coronel
Gurjão, apesar do zelo com a filha donzela, fazia gosto com o futuro casamento.
Naquela
sexta-feira, no bar do Benedito Calixto, o coronel tomava uma cachacinha, como
de seu costume, quando foi abordado pelo Balduíno. Chamou-lhe a um canto e,
reservadamente, lhe confidenciou:
- Olha,
coronel, o doutorzinho está de má intenção com sua filha. Ontem, aqui neste mesmo boteco, ele me
revelou que estava tirando umas casquinhas na Miralva. E que amanhã, sábado, ia
sair fumaça no encontro entre os dois. Estou dizendo porque sou amigo do Senhor
e acho que a moça merece respeito.
O coronel
enfunou a carcaça e asseverou:
- Ele que me
aguarde!
Dia
seguinte, na praça da Igreja, o Balduíno aborda o doutorzinho e chama-o a um
canto:
- Ponciano,
sou amigo de sua família e quero contar-lhe umas coisas que sei. Você está
namorando a Miralva, com boas intenções, mas devo confessar-lhe umas verdades.
Tive uns casinhos com ela há meses e, talvez você não saiba, a mocinha não é lá
essa flor que parece. Nuns poucos encontros, escondidos do coronel, tive
liberdades com ela que não sei se devo confessar-lhe.
- Fale,
Balduíno. Quero saber tudo.
- Olha,
nosso relacionamento embora curto, foi intenso. Para resumir, devo lhe dizer
apenas uma coisa e você tire as suas conclusões: a moça tem uma pinta em forma
de um coração bem acima do rebordo das nádegas, ali precisamente na bunda. Sei
disso porque conheço o mato onde andei.
O
doutorzinho calou-se acabrunhado. Certamente já amava a donzela. Agradeceu e encerrou
a conversa. Cada qual tomou seu rumo.
Dia
seguinte, à hora combinada, estava ele às portas do coronel para o encontro já
encaminhado. E o ódio e a decepção exalavam da face do Ponciano. Expeliu sua
mágoa contra a jovem a ponto de quase perder o controle:
- Então, Senhora
Miralva. Uma santa aos olhos dos bobos, como eu, e a libertinagem com os
rapazes do lugar! Como me enganei!... Pensei que era uma donzela pura, e fiz
planos para uma vida ao seu lado. E você
aí, de liberdade com a rapaziada do lugar! Um deles me contou. E não adianta
negar as intimidades que tiveram. Descreveu até suas partes íntimas. Negue se
tiver coragem! Negue!...
Miralva
tremia e não entendia o porquê daquilo tudo.
- Quer
saber, Miralva? Esse rapaz descreveu até uma pinta que você tem nas nádegas.
Chegou ao cúmulo de observar o que você deveria resguardar para o seu futuro
marido, que jamais serei eu.
Miralva
chorava e negava qualquer relacionamento com qualquer rapaz. Amava já o doutorzinho e não entendia o que
se passava. Ponciano insistia nas
acusações e ela, na volúpia de seu amor, negava qualquer relacionamento
anterior:
- Nunca tive
qualquer envolvimento com ninguém. Você é o meu primeiro namorado. Já tive até
outros pretendentes, mas rejeitei todos. E tem mais: não há pinta nenhuma em
minhas nádegas ou em qualquer lugar. Se quiser pode olhar e comprovar o que
venho dizendo.
O Ponciano,
envolvido pela sua paixão, misturada ao ódio que sentia no momento, ergueu a
saia e a combinação da Miralva para desmascará-la de uma vez por todas. Ato
contínuo, da fresta da janela do casarão o flamejar ruidoso do tiro de carabina
44, Papo Amarelo, disparada pelo
Coronel, já prevenido das libertinagens que, ante a advertência do Balduíno, o
doutorzinho teria com a sua filha.
Dia
seguinte, no velório, o Balduíno ao lado do caixão, silenciosamente expressou
consigo mesmo a sua satisfação íntima:
- Nem eu,
nem você, doutorzinho! Vá em paz!