quarta-feira, 26 de junho de 2019


NEM EU NEM VOCÊ

            Panicácio Gurjão era um tipo coronelão, tradicionalista. Tinha uma filha muito bonita, a Miralva, pretendida pela rapaziada importante de Capoeira do Jacu. Balduíno era um deles. Admirava a menina desde os tempos de escola, quando estudaram juntos no Ginásio Capistrano Brandão. O problema era que a menina era guardada a sete chaves pelo pai, e era difícil um espaço de liberdade para uma conversa mais enluarada. Ainda assim, o Balduíno conseguiu, na calada da praça principal, apresentar-lhe uma proposta de namoro, que a princípio não foi rejeitada nem aceita.
            Uma semana depois, chegou da capital o Ponciano Pangola, recém-formado em Direito, que se interessou pela Miralva, e acabou tendo a preferência da donzela. Balduíno cuspiu revoadas de marimbondos e passou a arquitetar um plano. Sua mente amiudada trabalhava noite e dia.
            O Ponciano, com seus trajes finos e com diploma de doutor, acabou firmando um princípio de namoro, bem encaminhado.  O coronel Gurjão, apesar do zelo com a filha donzela, fazia gosto com o futuro casamento.
            Naquela sexta-feira, no bar do Benedito Calixto, o coronel tomava uma cachacinha, como de seu costume, quando foi abordado pelo Balduíno. Chamou-lhe a um canto e, reservadamente, lhe confidenciou:
            - Olha, coronel, o doutorzinho está de má intenção com sua filha.  Ontem, aqui neste mesmo boteco, ele me revelou que estava tirando umas casquinhas na Miralva. E que amanhã, sábado, ia sair fumaça no encontro entre os dois. Estou dizendo porque sou amigo do Senhor e acho que a moça merece respeito.
            O coronel enfunou a carcaça e asseverou:
            - Ele que me aguarde!
            Dia seguinte, na praça da Igreja, o Balduíno aborda o doutorzinho e chama-o a um canto:
            - Ponciano, sou amigo de sua família e quero contar-lhe umas coisas que sei. Você está namorando a Miralva, com boas intenções, mas devo confessar-lhe umas verdades. Tive uns casinhos com ela há meses e, talvez você não saiba, a mocinha não é lá essa flor que parece. Nuns poucos encontros, escondidos do coronel, tive liberdades com ela que não sei se devo confessar-lhe.
            - Fale, Balduíno. Quero saber tudo.
            - Olha, nosso relacionamento embora curto, foi intenso. Para resumir, devo lhe dizer apenas uma coisa e você tire as suas conclusões: a moça tem uma pinta em forma de um coração bem acima do rebordo das nádegas, ali precisamente na bunda. Sei disso porque conheço o mato onde andei.
            O doutorzinho calou-se acabrunhado. Certamente já amava a donzela. Agradeceu e encerrou a conversa.  Cada qual tomou seu rumo.
            Dia seguinte, à hora combinada, estava ele às portas do coronel para o encontro já encaminhado. E o ódio e a decepção exalavam da face do Ponciano. Expeliu sua mágoa contra a jovem a ponto de quase perder o controle:
            - Então, Senhora Miralva. Uma santa aos olhos dos bobos, como eu, e a libertinagem com os rapazes do lugar! Como me enganei!... Pensei que era uma donzela pura, e fiz planos para uma vida ao seu lado.  E você aí, de liberdade com a rapaziada do lugar! Um deles me contou. E não adianta negar as intimidades que tiveram. Descreveu até suas partes íntimas. Negue se tiver coragem!  Negue!...
            Miralva tremia e não entendia o porquê daquilo tudo.
            - Quer saber, Miralva? Esse rapaz descreveu até uma pinta que você tem nas nádegas. Chegou ao cúmulo de observar o que você deveria resguardar para o seu futuro marido, que jamais serei eu.
            Miralva chorava e negava qualquer relacionamento com qualquer rapaz.  Amava já o doutorzinho e não entendia o que se passava.  Ponciano insistia nas acusações e ela, na volúpia de seu amor, negava qualquer relacionamento anterior:
            - Nunca tive qualquer envolvimento com ninguém. Você é o meu primeiro namorado. Já tive até outros pretendentes, mas rejeitei todos. E tem mais: não há pinta nenhuma em minhas nádegas ou em qualquer lugar. Se quiser pode olhar e comprovar o que venho dizendo.
            O Ponciano, envolvido pela sua paixão, misturada ao ódio que sentia no momento, ergueu a saia e a combinação da Miralva para desmascará-la de uma vez por todas. Ato contínuo, da fresta da janela do casarão o flamejar ruidoso do tiro de carabina 44, Papo Amarelo,  disparada pelo Coronel, já prevenido das libertinagens que, ante a advertência do Balduíno, o doutorzinho teria com a sua filha.
            Dia seguinte, no velório, o Balduíno ao lado do caixão, silenciosamente expressou consigo mesmo a sua satisfação íntima:
            - Nem eu, nem você, doutorzinho! Vá em paz!
           



sábado, 8 de junho de 2019

FILHO DA TERRA

  Sabinópolis tem mais um nome ilustre entre os nativos do Município, indivíduo que a mídia não conhece e nem valoriza como filho do lugar. Mas nós, atentos aos anseios da nossa comunidade vamos dar hoje o devido lugar a um dos filhos mais ilustres desta terra. Vejamos os fatos.
  Numa véspera de carnaval, dos meados dos anos cinquenta, a jardineira de Valdir Araújo trazia os sabinopolitanos de Belo Horizonte para uma das festas que, desde aquela época, era um dos melhores carnavais do país. Possivelmente perderia apenas para o carnaval carioca, e olhe lá. Jardineira lotada na rodoviária, muita gente em pé, chega o Peixoto, irmão de Tyrone. Mochila nas costas procurando uma vaga. O veículo estava abarrotado, mas mesmo assim procuraram um lugarzinho para mais um filho da terra. E foi a glória a que Sabinópolis rende homenagem até hoje e para sempre. Alguém viu o jovem procurando um lugar e perguntou para a turma que preenchia os espaços do veículo:
- Cabe o Peixoto?
  Mexeram e viraram e acabaram botando o Peixoto para dentro. Em pé, no fundo. Veículo roncando pela Av. Antônio Carlos até que numa curva para pegar a saída para Lagoa Santa, caminho obrigatório na nossa rota, apertaram alguma parte subalterna e sensitiva do Peixoto num cano de um banco. Peixoto soltou um uivo em dó sustenido (tem isso?) que foi ouvido por toda a adjacência, inclusive pelo Maestro João Silvério que viajava num banco atrás do motorista. A notícia se espalhou com incentivo do maestro. O jovem foi enviado ao Rio de Janeiro para fazer um teste na Rádio Nacional e daí para frente foi o que se sabe.
   A frase que o admitiu na jardineira foi o ensejo para o nome artístico que passou a adotar: de cabe o Peixoto, virou Cauby Peixoto, cantor dos mais afinados e mais cultuados pela nossa sociedade. Pena que não valorizaram a terra em que nasceu. Mas estamos aqui para fazer justiça.
   Sempre

08.06.2019.