quinta-feira, 27 de agosto de 2015

CABOCLO ESPERTO



Naqueles tempos antigos, seguiam estrada afora um padre, o seu sacristão e um caboclo.  O padre cumpria a sua missão de confessar os fiéis e levar-lhes os ensinamentos cristãos, além de ministrar-lhes os sacramentos. O sacristão era o seu ajudante de ordem e o caboclo, além de companhia, fazia algum serviço mais pesado.
O avizinhamento da noite levou-lhes a decidir descansar sob uma lona que lhes servia de abrigo. Água ainda havia no odre, mas para alimentarem-se apenas um ovo cozido restara, oferta do morador onde pousaram na noite anterior. Um único ovo. Para uma só pessoa, certamente lhe mitigaria parcialmente a fome. Já dividi-lo em três partes seria insensato. Os três ficariam com fome. O padre propôs a solução:
- Vamos dormir um pouco e aquele que tiver o sonho mais bonito comerá o ovo.
Os demais aquiesceram e procuraram um encosto para o descanso. Umas duas horas depois o padre convoca os demais e passa a narrar o sonho que tivera:
- Sonhei que subia pela escada de Jacó em direção ao céu. A cada passo observava cá em baixo a beleza azul da terra. Os lagos, os campos, as florestas. Voltava o meu olhar para o alto e via a porta deslumbrante do céu e, frente a ela, São Pedro, com sua barba branca e a chave do paraíso na mão.
Os dois ouvintes aplaudiram, boquiabertos. Foi a vez do sacristão narrar o seu sonho:
- Sonhei, Senhores, que cheguei ao céu e vi, deslumbrado, o padre entre anjos e santos, em meio ao algodoal das nuvens. Aquele brilho do lugar e aquela beleza divina me ofuscava o olhar. Senti um prazer inigualável de estar no paraíso, juntamente com o Senhor Padre.
Mais aplausos. E foi a vez do caboclo:
- Oia, gente, eu vi que ocês tavam lá no bem bão do paraíso, junto com Deus seus anjos e seus santos. Pelo visto ninguém precisava de mais nada. E eu aqui com uma fome miserável. Aí eu fui lá e comi o ovo.

E um sorriso amarelo brotou-lhe da face sulcada pelo tempo.

domingo, 2 de agosto de 2015

                
A PEDRA DO SONHO
                                                                           
                                                                           


                Vivi a minha infância naquela fazenda que mais tarde pertenceu ao meu tio Lauro.  Próxima à cidade e com bastante conforto para a época, ali tive meus dias mais marcantes. Foi lá que folheei as primeiras revistas, li os meus primeiros livros... Ouvi inúmeras histórias e sonhei como um menino ingênuo sonha. Dali  trouxe meus conceitos de vida e as lembranças mais marcantes de uma infância feliz.  Ao lado de  meus pais, de meus irmãos, da natureza e dos animais, foi ali, naquele pedaço de chão, que sedimentei os meus princípios que até hoje me conduzem pela estrada afora, sem que remorsos me persigam nas curvas de meus caminhos.
                   Possivelmente, se Deus quiser, chegarei são e salvo ao fim da vida.
                Mas nesta propriedade havia uma pedra. Não daquelas do Poeta Drumond. Esta era uma pedra grande, que não me atravancava o caminho.  Incrustada na montanha, numa forma ovalada, só deixava transparecer o que seria a sua metade, de uma maneira transversal, um pouco achatada na sua parte mais elevada. Numa inclinação íngreme, deixava  sobressair a sua calota superior. Ali é que estava o mistério. Havia uma trinca que circundava aquela calota, num nível horizontal, o que dava à nossa imaginação a perspectiva de que aquilo teria sido propositalmente cortado, formando o que seria uma tampa. Na batida de pés, o som ecoava rouco... Grave... Como se houvesse abaixo uma parte oca.
                E a nossa imaginação, de meus irmãos e minha, revoava ao passado sonhando como num conto de fadas.
                - Quem sabe ali não haveria, escondidos, nalgum vão cavado, tesouros de bandeirantes!
                Sabíamos que por ali tinham eles trafegado. E sonhávamos com esmeraldas, rubis, diamantes, ouro... E tudo mais que hoje certamente seja a ruína do mundo.
                Sempre que visitávamos aquele lugar, revivíamos os nossos sonhos. Batíamos os pés na pedra e ouvíamos o som da fortuna.
                Adulteramos, – seria talvez essa uma boa palavra  para quem se tornou adulto -  e o sonho  se diluiu no perpassar da vida. Ademais, deixamos aquela fazenda e fomos residir na cidadezinha de Sabinópolis e daí divergimo-nos para onde cada um de nós hoje vive.
                A pedra grande ficou lá, encerrando o seu mistério.
                Mais tarde, meu tio Lauro para lá se mudou. Já conhecia nossos sonhos. Dinamitando pedreiras nas imediações para construção de uma casa na cidade, resolveu trazer a limpo a interrogação que persistia no ar. Mandou abrir uma fenda na carapuça da rocha, inseriu nela bananas de dinamite e mandou pelos ares nossos sonhos de infância.
                Não havia ouro... Nem pedras... Nem fortuna.  Apenas a rocha mãe que abrigava nossas ilusões.
                Passei por lá tempos depois. Vi a laje desmoronada. Duas lágrimas, de sabor muito antigo, rolaram-me pela  face.