quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

DESAFORO NÃO

            Início da década de sessenta. Ali, na Rua de Baixo, no exato ponto onde foi a loja de Hugo Magalhães, Pedrinho e Benedito Braga exploravam um bar.
            Numa tarde morna, um paradeiro próprio da época. Eu e Daniel (da família de Custódio) mais conhecido como Daniel dos Ovos (não sei a origem do apelido) éramos os únicos presentes, além de Benedito, o proprietário do lugar. Chega um forasteiro, coisa rara naquela época, provavelmente um vendedor, e envereda conversa com o dono do estabelecimento. O Daniel, já bêbado, como de seu costume, enfia a colher de pau na conversa o que irrita o tal vendedor. Deseducadamente, repele a interferência, repreendendo o cachaceiro:
            - Sai pra lá, sujeito! Vai encher o saco de outro!
            E o Daniel, subserviente e desculpativo:
            - Desculpa, moço, eu não queria te aborrecer.
            - Mas já aborreceu! Sai pra lá e me deixa em paz!
            O Daniel recolhe-se a um canto e não diz mais nada. O viajante termina a conversa com o Benedito e sai, não sem antes despejar um olhar carrancudo sobre a humildade do bêbado. Após alguns segundos o Daniel chega à porta do bar e, depois de certificar-se que o viajante já quebrara a esquina do Bar de Homero, com as feições enfezadas, expele a sua revolta:
            - Vai a merda, sujeito! Volta cá pro’cê ver!
            Empinou a carcaça do peito assumindo um ar de dignidade dos nobres. Acendeu um cigarro e expeliu a fumaça para o alto.         


DEIXA PRA LÁ

            Final da década de cinquenta ou, talvez, início dos anos sessenta. No Gramado da Hortinha, em Sabinópolis, jogavam o Correntes Clube e o Graipu.  Planadeira era um dos principais jogadores do Graipu. Angariara este apelido porque onde passava o seu pé as saliências do gramado se desvaneciam. Planava o terreno... e jogando descalço, à falta de uma chuteira maior que o número quarenta e quatro.
            Haroldo Araújo, naquele embate, era o goleiro do Correntes. Esforçado, mas de baixa estatura, nunca chegou a ser brilhante na posição. Naquele dia, depois de levar uns dois gols, Donê Queiroga, o técnico, achou por bem substituí-lo. Convocou Dalvon Mendes, o Patati, para se encarregar de defender a  meta, numa tentativa de melhorar o sistema defensivo. O Patati deu aquele pique clássico de aquecimento, sacolejou os braços e aproximou-se da meta defendida pelo Haroldo. Meio avexado, aproximou-se e deu o seu recado:
            - Haroldo, o Donê mandou eu entrar no seu lugar.
            Haroldo virou-se ligeiramente para trás e disparou:
            - Não saio daqui nem a tiro. Nem morto.
            Dalvon coçou a base da nuca e voltou-se para a lateral do campo onde se encontrava o técnico:
            - Seu Donê, o homem falou que não sai de lá nem a tiro. Nem morto.
            Donê avaliou a situação e indagou do goleiro reserva:
            - Dalvon, você vai lá dar tiro nele? Vai querer matá-lo?
            - Tá doido, Seu Donê! Faço isto, não!
            E o Donê, com aquela calma que lhe era peculiar:
            - Então deixa o homem lá.  E ponto final.

            O Graipu foi embora comemorando uma vitória histórica.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

A SELA DO BISPO



            Santana do Badulaque estava eufórica. Pela primeira vez iria receber o bispo da diocese, Dom Serapião Pestana. A cidadezinha era um reboliço só. As senhoras do lugar preparavam os comes-e-bebes para a comitiva. Outros, os jovens, cuidavam da recepção. A criançada ensaiara, por mais de mês, hinos religiosos e pátrios para desovar na chegada. Os poucos músicos do lugar capricharam em vários dobrados para desafinar menos na chegada do religioso e seus padres acompanhantes. Já o fazendeiro Aristobaldo Praxedes cuidava dos animais e dos arreios que iriam buscar a comitiva de Sua Excelência Reverendíssima na estação mais próxima, cerca de meia légua da cidade. Animais caros e dóceis,  arreios especiais e todo o conforto possível era providenciado para trazer o religioso e sua comitiva para a visita histórica à cidadezinha. Em frente à casa do Praxedes, onde também se hospedariam os religiosos, a turma ultima os retoques para buscar o séquito representante de Deus. Chega o Antenório Gusmão, o boticário do lugar, observa a arrumação e destaca um cavalo alazão, o mais bem arreado. Toca a borraina da cela para certificar-se de sua maciez. Chega o dono dos animais e, orgulhosamente, assevera:
            - Este é o meu melhor cavalo, com o melhor arreio que tenho, reservado para Sua Excelência Reverendíssima.
            O boticário repica a mão mais três vezes sobre o assento do arreio e comenta:
            - Então é aí que Sua Excelência Reverendíssima, Dom Pestana, irá repousar a sua Santíssima bunda.

            Se alguém em volta teceu algum comentário descarece aqui narrar.