quinta-feira, 17 de janeiro de 2019


O VELÓRIO

            Placidino Cangalha enfim descansara de longa enfermidade. A família chorosa velava o seu corpo na sala modesta de sua residência, na periferia da Vila Três Cabaças. A cachaça corria farta, como de costume nessas ocasiões. Alguma coisa de se beliscar era servida de quando em vez naquela noite fria de junho.
            Tocado a cachaça e em passos incertos chega para a obrigação social o Clemente Pé Inchado. Talvez mesmo em busca de reabastecimento e satisfação de seu vício, há muito petrificado. E com a vantagem: ali a calibrina era servida sem quaisquer ônus. Chegou manso, vergou o corpo na porta de entrada e cumprimentou os parentes, já pesquisando com o olhar guloso onde poderia estar a garrafa. Encontrou-a sobre a mesa, na cozinha e, sem cerimônia, já se serviu de uma dose generosa. Retornou à sala onde repousava o falecido e ali teceu vários elogios à sua figura. Comentou sobre a sua bondade e acabou fazendo algumas revelações sobre o gosto do Cangalha por um rabo de saia, o que desagradou os filhos e constrangeu a viúva que chorava à cabeceira do defunto. Repreendido por alguém, disparou mais a metralhadora de sua língua indiscreta:
            - Falo mesmo! Falo e provo: o Cangalha foi o maior mulherengo que já vi. Não perdia vaza. Bobeou tava no seu bico.
            Foi afastado para o quintal da casa enquanto era repreendido por alguns amigos da família.
            - Cala essa boca, Pé Inchado. Respeita a ocasião e a família do falecido!
            Passou pela cozinha quieto, como se tivesse ouvido os conselhos. Bebeu mais uma e voltou à beira do caixão. Olhou para a figura pálida do morto e deixou escapar:
            - Eh, Cangalha. Cê era mesmo o tal! Se aparecesse por aqui os filhos que andou espalhando pelo mundo, a casa não ia caber.
            E disparou uma cargalhada como uma rajada de metralhadora.
            Foi posto para fora aos arrancos e empurrões. Viu-se livre e ainda voltou-se à porta da residência e disparou em com sua voz encachaçada:
            - Olha, pessoal. Pega seu defunto e enfia lá nos seus ...! – E nomeou o lugar.
            E a passos claudicantes perdeu-se na escuridão da noite. Como um fantasma embriagado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário