sexta-feira, 30 de outubro de 2020

 

A NOITE DO LOBISOMEM

 

            Peribaldo Gancho seguia naquele anoitecer de sexta-feira, já em finais de Quaresma, em direção ao sítio de sua propriedade, depois da Serra do Gambá Russo. Uma lua quase cheia, brunida, vagabundava na imensidão do céu. Antecipava mentalmente o encontro que teria dali a pouco com a Comadre Pedrelina que lhe lançara uns olhares safadosos três dias antes lá na venda do Mafaldo:

            - Passa lá, Peribaldo! Vamos ficar   satisfeitos com sua visita.

            E minguando a fala, quase num cochicho:

            - Clementino viajou e só volta no domingo.

            Tão logo desviou-se da estrada para as artes a que se propunha, viu o Chiquinho Pangaré descendo a serra em direção à venda na beira da estrada bem adiante onde sempre adquiria querosene para a iluminação de seu rancho e meio litro de cachaça que trazia sempre na mesma botelha para o seu consumo diário. Conheceu o Pangaré pelo seu andar estropiado e pela carcaça meio arqueada, já que, apesar da lua, a sombra da mata embaçava a visão.

            Seguiu as suas más intenções e visitou a sua comadre. O que se passou lá só dá para deduzir. Não vi e me abstenho de relatar.

            Chegou em casa umas duas horas mais tarde do que de costume sob os olhares inquiritivos da patroa:

            - Onde cê andava, home? Até essa hora!?

            Narrou uma história imaginativa, o que sempre fora seu forte:

            - Encontrei o Pangaré ali na curva da mata, tremendo como vara verde, que me relatou o encontro que tivera com um lobisomem, dos graúdos, justamente ali debaixo do pé de gameleira. Pensei até em voltar e me arranchar nalgum lugar para evitar a encrenca. Mas fiquei preocupado com você aqui só com as crianças e, depois que tomei coragem,  rezei umas orações e percorri uma trilha estreita na mata onde lobisomem não frequenta e consegui chegar.

            Lavou os pés e se deitou, sonhando com cantos de pássaros, flores em beira de riacho e, se alguém reparasse, certamente perceberia um sorriso de borboleta em sua face vagabunda.

            Dia seguinte avista o Pangaré recolhendo lenha próximo à sua divisa e, na presença da sua mulher, pergunta pela assombração:

            - E aí, home, recuperou-se do susto?  Tempo de Quaresma é tempo bravo!

            - Susto? De que susto cê tá falando?

            - Do encontro ontem com o lobisomem!  Lembra que me contou lá no final da serra?

            - Sei de nada, não! Nem vi o Senhor ontem!

            Fixou o olhar perguntativo no Peribaldo e depois deixou-o passear pelo vazio em volta.

            Perivaldo comentou à boca miúda com a mulher:

            - Bem que meu Padrinho Caixeta dizia, pouco antes de desencarnar:

            - O bafo de lobisomem faz perder a memória uns cinco ou dez minutos depois e o vivente não mais se lembra do assombrado. É a sabedoria de Deus para evitar deixar o homem mofino, sem coragem para sair em noite de Quaresma.

            Virou-se para um lado e sorriu safadamente naquele final de tarde.

 

            29.10.2020.

 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

 

MARMITA INDISCRETA

Pancácio Giró morava na periferia da capital. Toda manhã, no mesmo horário e no mesmo ônibus, vinha fazendo brincadeiras com os amigos no deslocamento para o serviço no centro da cidade. Muito alegre só tinha um defeito: gostava de contar vantagens e demonstrar, com seu prosear fajuto, um padrão de vida para o qual era incapaz. Contava história de gastos que fizera, muitos acima de suas reais possibilidades. Se comprava uma carne no açougue do bairro, fazia questão de levá-la em sacola transparente. Ainda passava no barzinho da esquina para que os amigos vissem o que comprara. Vestia-se relativamente bem e só andava em pé, adiante da roleta, para se destacar entre os colegas que sentavam logo atrás e apreciavam aquele jeito malandro de desovar a sua prosa.

            Naquele dia, como de costume, vinha ali matraqueando, sacola plástica na mão onde se podia perceber em seu interior a marmita de seu almoço que sempre transportava. A uma freada inesperada do veículo, perdeu o equilíbrio quase indo ao chão. Equilibrou-se a tempo, agarrando-se no suporte acima. Contudo, teve que desprender-se da marmita que caiu logo à sua frente.  Com o impacto, saltou fora da sacola, lançando a tampa para o lado, deixando a descoberto o almoço que levava: arroz, feijão, repolho e um ovo. E no meio, um pé de frango, com os dedos crispados e levantados como a saudar os companheiros que se distribuíam à frente.

            A cena despertou as gargalhadas dos colegas. O Pancácio, perdeu a poesia e desceu no primeiro ponto à frente, com uma desculpa qualquer, para seguir no coletivo que veio logo depois.

            A partir deste dia, passou a levantar-se meia hora mais cedo para tomar um ônibus desinfetado de seus antigos companheiros. No bairro, pouco era visto pelas ruas.

            Transformou-se em outra pessoa. Nunca mais foi o Pancácio alegre que até então fora.

            Pena!

 

19.10.2020

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

 

RECONTANDO A HISTÓRIA

 

            O ano era o de 1500. Cabral reuniu uma curriola lá em Portugal e se preparou para descobrir o Brasil. Todo mundo analfabeto, inclusive o próprio, pediu ao rei Dom Manuel para incorporar à sua turma alguém  que soubesse escrever. Havia um vereador na cidade de Porto, inútil como quase todos os que conhecemos, que foi convidado para rabiscar alguma coisa e enviar para o rei. Chamava-se Pedro. O sobrenome nem sei se tinha. De pronto o Pedro fez corpo mole. Preferia ficar exercendo a vereança, auferindo os altos subsídios que lhe proporcionava o mandato. Por fim, recebeu uma ordem mais incisiva do rei, que lhe determinou:

- Pedro, vai! Caminha!

Aí não teve jeito. Veio. Entenderam mal as palavras do rei e passaram a chamar-lhe de Pero Vaz Caminha.

Quando a frota chegou às costas do Brasil, lá na Bahia, foram recebidos pelos índios, tudo peladão. O escrivão anotou a primeira observação:

-Roupa aqui deve ser muito cara!

Ainda não havia os “baratões” e os barraqueiros da Festa de Agosto.

Uma das afirmativas contidas na carta do escrivão é a seguinte:

-“Aqui, se plantando, tudo dá!”

Percebeu isto quando se desentendeu com um índio que queria pegar umas folhas de papel que trouxe para escrever. O índio pretendia se desapertar atrás de uma daquelas moitas que havia por ali. Impedido, plantou a mão na fuça do escrivão. Dito e feito! Deu! Foi a primeira confusão e pancadaria aqui na nova terra.

Saíram de lá corridos e foram parar lá no Planalto Central, onde hoje se localiza a Capital Federal. Ali, flagraram pela terceira vez um dos integrantes da frota furtando coisas de colegas. A sentença de Cabral foi implacável: Mata este rato!

Cumprida a sentença, o larápio foi enterrado por ali, onde é hoje a Praça dos Três Poderes.

Mais uma vez cumpriu-se a previsão do escriba: “Aqui, se plantando, tudo dá!”

Não se vê hoje a quantidade de ladrões que circulam por aquele pedaço?

Só uma coisa até hoje me intriga: Como que esta carta foi chegar às mãos do rei Dom Manuel? Correio... telégrafo... whats app?

Arnon 30.09.2020.