segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

 

 O INTÉRPRETE DE SONHOS

Clodovino Pigarro andava meio intrigado com a sequência de sonhos que tivera nos últimos dias. Coisas estranhas que passaram a preocupá-lo. Procurou um amigo que o aconselhou a procurar um entendido do assunto. Assim foi que resolveu consultar o Capistrano Sovaco na cidade vizinha de Caracóis. Relacionou cerca de oito sonhos que tivera nos últimos dias para não esquecer durante a consulta.

O local era estranho. Um cômodo sinistro, pintado de preto e vermelho, iluminado com velas também das mesmas cores. Foi recebido pelo Capistrano e abancou-se para a consulta. Na mesa à sua frente o aviso: Pagamento adiantado. Providenciou a verba e dispôs de cento e cinquenta reais. Achou o preço razoável. Apresentou o seu primeiro sonho.

- Olha, Seu Capistrano, sonhei outro dia com o portão do cemitério e uma coruja sobre ele.

O mestre cofiou a barba rala e sentenciou:

- Coisa boa não é. Tem morte nisso!

Clodovino matutou. Não tinha parentes próximos e um único irmão havia desaparecido há mais de trinta anos. Nem se lembrava dele mais. A morte então só se fosse a própria para preocupá-lo. Apresentou o segundo sonho constante da relação que fizera.

- Mais cento e cinquenta reais, seu Pigarro. Cobro por cada sonho que interpreto. Pagou, já meio aborrecido.

- Sonhei seu Capistrano, com um relógio estranho, todo preto, sempre me sobrevoando por onde ia. Uma vela negra iluminando o seu mostrador.

- É morte também, seu Pigarro! É morte também.

Clodovino tremeu em suas estruturas e não quis saber dos outros sonhos que havia relacionado. Inquiriu o consultor:

- E pra quando é isto, Seu Capistrano?

- Aí é outra história, Seu Pigarro. Eu apenas interpreto os sonhos. Um colega meu, de Ribeirão de Baixo, é que define o prazo que você ainda pode ter. Deixa comigo mil reais e pode voltar em uma semana que já tenho a resposta.

Clodovino raspou as suas economias na conta bancária e deixou a verba com  o vidente. Voltou na data marcada e havia uma aglomeração na porta da casa do Capistrano. Inquiriu um curioso:

- Que houve aqui? Porque este povo na rua?

- É o homem que morreu! Seu Capistrano, o vidente.

Naquele exato momento o corpo saía enrolado em lençóis para o preparo dos funerais.

 

31.01.2021

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

 


    Baduíno Gondó desconfiava que um Ricardão frequentava a sua residência. Uma noite dessas, ouviu um ruído na cozinha. Levantou-se e, pé-ante-pé, foi ver o que era. Um vulto vagava na escuridão do cômodo. Moeu o sei-lá-quem-seja no porrete. Acendeu a luz: era Papai Noel.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

 

DECRETO MUNICIPAL

 

Berdoaldo Caixote prefeitava a cidade de Coronel Custódio quando aportou no mundo, inclusive lá, o corona vírus.  Foi um Deus-nos-acuda. O terror dominava a população surpreendida com a má novidade para a qual ainda não se tinha qualquer conhecimento prévio. Fecharam-se as escolas, a única igreja, o comércio em geral, inclusive os dois bares da rua principal, que, aliás, era a única da cidade. A cidadezinha parou. Era aquela tristeza. Os mais velhos não ousavam nem chegar às janelas. Da sala pra cozinha e, às vezes, uma volta rápida no quintal.  Berdoaldo via aquilo incomodado. Os correligionários procuravam uma solução, uma palavra de seu comandante maior. Depois de algumas noites sem dormir, preocupado com a fome que rondava o lugar, a população acordou com um Decreto Municipal afixado em todos os locais mais visíveis do lugar, nestes termos:

DECRETO 25.072

O Prefeito Municipal, no uso das prerrogativas que lhe são conferidas pela Constituição Federal, considerando o estado de calamidade pública que atravessa o Município de Coronel Custódio, em atenção aos anseios sociais do lugar, resolve:

Decretar extinta a COVID-19 neste Município a partir de zero hora do dia 25 de novembro de 2020.

Revoguem-se as disposições em contrário.

 

Coronel Custódio,  24 de novembro de 2020.

 

Ass:  Berdoaldo Caixote e Figueiras

Prefeito Municipal.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

 

ESTRATÉGIA POLÍTICA

 

            Manezinho Pangola salpicava a sua figura pelas ruas de sua cidade natal, a pequena Abobreiras. Era conhecido por todos, até porque lá todo mundo conhecia todo mundo. Tinha seus particulares. Devia a dois na praça: a Deus e ao resto do mundo. Pagava de vez em quando um, fazia mais dois ou três débitos e ia levando a vida.

            Vieram as eleições. Pensou, matutou e resolveu candidatar-se a vereador. Do pensamento à ação. Achou um partido pelo qual se inscreveu e partiu para a campanha. Ninguém acreditava que teria votos suficientes. Ele mesmo, em análise fria, contou cerca de oito. Apenas. Um da mãe, dois dos seus dois irmãos, um tio que o estimava, um compadre  (duvidoso),  mais dois amigos e o seu próprio voto.

            Vieram as eleições e em seguida a apuração. Foi o mais votado, deixando pasma a comunidade da cidadezinha. Justificou o surpreendente sufrágio:

            - Prometi a todos os meus credores que, se eleito, com o reforço do subsídio do cargo, pagaria todas as minhas contas.

            Se cumpriu a promessa não sei. Pergunte a ele ou ao comércio em geral de Abobreiras.

            Nota do autor: Comunico que não cobrarei direitos autorais a quem quiser aplicar a mesma estratégia.

12.11.2020.

 

A LISTA

 

            Geroliso Condé morava numa cidadezinha lá pras bandas do Rio Fumaça. Morro das Cabaças era um comercinho próspero e até certo ponto agitado.

            O Condé vivia de uma aposentadoria pouca, mas suficiente para sua vidinha sem grandes pretensões.  Morava num ponto estratégico da cidade, sozinho e conhecia a vida de quase todos do lugar. Dormia pouco e, de sua varanda, rondava com o olhar a praça principal e, muitas vezes dava um giro pelas imediações já noite alta ou madrugada.

            Naquele dia, sentou-se ao lado de Manezinho Cabeção e relatou-lhe o que andava aprontando:

            - Olha, Cabeção. Sei de quase tudo que passa de errado aqui neste lugar. Conheço as pessoas casadas e outras não que andam com mulheres ou maridos de gente daqui.  Gente que você nem imagina. Tudo por debaixo do pano.

            E revelou o seu intento:

            - Estou descrevendo tudo num relatório que já está quase pronto e vou vendê-lo para os interessados.

            - Tá doido, homem! Isto é muito sério! Vai dar morte, inclusive você mesmo corre o risco!

            - Calma, Cabeção. Deixa que eu explique. Estou fazendo  um relato, a princípio, sem citar nome de ninguém.  Cada pessoa será conhecida por uma letra ou um número. Posteriormente eu vendo caro a listagem que identificará cada um. Anoto o nome dos interessados, recebo o pagamento adiantado e distribuo a folha encrencosa. De posse dessa grana, pretendo dar um giro lá pela capital e espero a coisa esfriar.

            Assim como pensou, fez. Distribuiu os relatos de graça e agendou dia, local e hora para vender a listagem reveladora dos nomes.

            Hora marcada, chegou. Muita gente esperava. A curiosidade era enorme.  

            Aproximou-se e explicou o seguinte:

            - Olha, pessoal. Sinto informá-los que, por motivo de força maior, não vou disponibilizar mais a tal listagem.  Embora ameaçado pelos protagonistas dos casos narrados, ia vender a listagem assim mesmo.  Mas eles pagaram muito mais para que eu a consumisse.

            E numa falha crassa de memória, disparou:

            - A mulher do delegado me deu uma fortuna para incinerar os papéis. Sem falar nos demais que me pagaram muito bem.

            Recobrou a consciência e escafedeu-se pela rua estreita.  Transcorridos mais de dois anos, até hoje ninguém dá notícia de Geroliso Condé.

10.11.2020

             

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

 

A NOITE DO LOBISOMEM

 

            Peribaldo Gancho seguia naquele anoitecer de sexta-feira, já em finais de Quaresma, em direção ao sítio de sua propriedade, depois da Serra do Gambá Russo. Uma lua quase cheia, brunida, vagabundava na imensidão do céu. Antecipava mentalmente o encontro que teria dali a pouco com a Comadre Pedrelina que lhe lançara uns olhares safadosos três dias antes lá na venda do Mafaldo:

            - Passa lá, Peribaldo! Vamos ficar   satisfeitos com sua visita.

            E minguando a fala, quase num cochicho:

            - Clementino viajou e só volta no domingo.

            Tão logo desviou-se da estrada para as artes a que se propunha, viu o Chiquinho Pangaré descendo a serra em direção à venda na beira da estrada bem adiante onde sempre adquiria querosene para a iluminação de seu rancho e meio litro de cachaça que trazia sempre na mesma botelha para o seu consumo diário. Conheceu o Pangaré pelo seu andar estropiado e pela carcaça meio arqueada, já que, apesar da lua, a sombra da mata embaçava a visão.

            Seguiu as suas más intenções e visitou a sua comadre. O que se passou lá só dá para deduzir. Não vi e me abstenho de relatar.

            Chegou em casa umas duas horas mais tarde do que de costume sob os olhares inquiritivos da patroa:

            - Onde cê andava, home? Até essa hora!?

            Narrou uma história imaginativa, o que sempre fora seu forte:

            - Encontrei o Pangaré ali na curva da mata, tremendo como vara verde, que me relatou o encontro que tivera com um lobisomem, dos graúdos, justamente ali debaixo do pé de gameleira. Pensei até em voltar e me arranchar nalgum lugar para evitar a encrenca. Mas fiquei preocupado com você aqui só com as crianças e, depois que tomei coragem,  rezei umas orações e percorri uma trilha estreita na mata onde lobisomem não frequenta e consegui chegar.

            Lavou os pés e se deitou, sonhando com cantos de pássaros, flores em beira de riacho e, se alguém reparasse, certamente perceberia um sorriso de borboleta em sua face vagabunda.

            Dia seguinte avista o Pangaré recolhendo lenha próximo à sua divisa e, na presença da sua mulher, pergunta pela assombração:

            - E aí, home, recuperou-se do susto?  Tempo de Quaresma é tempo bravo!

            - Susto? De que susto cê tá falando?

            - Do encontro ontem com o lobisomem!  Lembra que me contou lá no final da serra?

            - Sei de nada, não! Nem vi o Senhor ontem!

            Fixou o olhar perguntativo no Peribaldo e depois deixou-o passear pelo vazio em volta.

            Perivaldo comentou à boca miúda com a mulher:

            - Bem que meu Padrinho Caixeta dizia, pouco antes de desencarnar:

            - O bafo de lobisomem faz perder a memória uns cinco ou dez minutos depois e o vivente não mais se lembra do assombrado. É a sabedoria de Deus para evitar deixar o homem mofino, sem coragem para sair em noite de Quaresma.

            Virou-se para um lado e sorriu safadamente naquele final de tarde.

 

            29.10.2020.

 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

 

MARMITA INDISCRETA

Pancácio Giró morava na periferia da capital. Toda manhã, no mesmo horário e no mesmo ônibus, vinha fazendo brincadeiras com os amigos no deslocamento para o serviço no centro da cidade. Muito alegre só tinha um defeito: gostava de contar vantagens e demonstrar, com seu prosear fajuto, um padrão de vida para o qual era incapaz. Contava história de gastos que fizera, muitos acima de suas reais possibilidades. Se comprava uma carne no açougue do bairro, fazia questão de levá-la em sacola transparente. Ainda passava no barzinho da esquina para que os amigos vissem o que comprara. Vestia-se relativamente bem e só andava em pé, adiante da roleta, para se destacar entre os colegas que sentavam logo atrás e apreciavam aquele jeito malandro de desovar a sua prosa.

            Naquele dia, como de costume, vinha ali matraqueando, sacola plástica na mão onde se podia perceber em seu interior a marmita de seu almoço que sempre transportava. A uma freada inesperada do veículo, perdeu o equilíbrio quase indo ao chão. Equilibrou-se a tempo, agarrando-se no suporte acima. Contudo, teve que desprender-se da marmita que caiu logo à sua frente.  Com o impacto, saltou fora da sacola, lançando a tampa para o lado, deixando a descoberto o almoço que levava: arroz, feijão, repolho e um ovo. E no meio, um pé de frango, com os dedos crispados e levantados como a saudar os companheiros que se distribuíam à frente.

            A cena despertou as gargalhadas dos colegas. O Pancácio, perdeu a poesia e desceu no primeiro ponto à frente, com uma desculpa qualquer, para seguir no coletivo que veio logo depois.

            A partir deste dia, passou a levantar-se meia hora mais cedo para tomar um ônibus desinfetado de seus antigos companheiros. No bairro, pouco era visto pelas ruas.

            Transformou-se em outra pessoa. Nunca mais foi o Pancácio alegre que até então fora.

            Pena!

 

19.10.2020