sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

O PIROTÉCNICO

            O barril do tempo, naquele dia antigo, gotejava preguiçosamente cada minuto. João Camilo descansava na espreguiçadeira da sala quando ouviu umas batidas leves, repetidas, oriundas do varandão da frente da fazenda. A cachorrada latia inquieta anunciando presença estranha. Com certa dificuldade, ergueu-se o velho e, a passo lento, foi ver o que era. Ainda sobre o cavalo um sujeito empinado, no descambar da juventude, vestido com certa elegância, cumprimentou-o cortesmente.
            - Boa tarde, Senhor! Estou de passagem e vim pedir uma caneca d’água. Pretendo chegar, antes da noite, lá em São Sebastião dos Correntes.
            - Apeie e se achegue, companheiro! Ainda tem muito chão até o seu destino.
            O forasteiro apeou, passou o cabo do cabresto numa travessa de madeira apropriada para tal e, de chapéu na mão, subiu os quatro degraus que davam acesso à varanda.
            - Prazer, Senhor, meu nome é Mário Xavier, seu criado.
            - Esteja à vontade, Seu Mário. Meu nome é João Camilo. Vamos entrar. O Senhor toma a sua água e descansa enquanto mando passar um café da hora.
            Sentados na sala, ainda pouco à vontade, as indagações costumeiras:
            - Ainda que mal pergunte, qual é mesmo o seu ofício – indagou o fazendeiro.
            - Ah, sim. Eu sou pirotécnico, Seu Camilo.
            - Heim! Piro treco? Pirou teco?...
            - É mais ou menos isto. Pirotécnico – repetiu o visitante.
            João Camilo empinou a carcaça do peito, assumiu ares de dignidade e disparou a ordem em direção à cozinha:
            - Tatana, prepara um café novo aí para o moço. De açúcar, viu? E vê se avia também uns bolinhos ou umas broas pro doutor.
            E o Xavier, um pouco constrangido:
            - Nem tanto, Seu Camilo! Nem tanto!
            E o fazendeiro voltando-se curioso para o rapaz:
            - Seu Mário, desculpe a ignorância, mas o que é mesmo que o Senhor faz no seu ofício?
            - Olha, Seu Camilo, é rojão, foguetes de varas, bombas, traques, busca-pés... Estou indo lá na Vila de São Sebastião para uma festa do padroeiro.
            E o velho, sem disfarçar um ar de decepção, voltando-se para a cozinha:

            - Tatana, faz o café de rapadura mesmo e traz aqui depressa. O moço é fogueteiro, ouviu!

(Do meu livro Ao Redor da Fogueira).

sábado, 10 de dezembro de 2016

A CIRURGIA

            Manoel Cascalheira era um burocrata de pouca expressão no serviço público de Cachoeira dos Balaios. Com menos de quarenta anos viu, com certa tristeza, que seus cabelos iam se despedindo, causando-lhe grande desgosto. Apurou alguma verba de suas economias e partiu para a capital onde submeteu-se a uma cirurgia de implante de cabelos, por sinal bem sucedida. De volta à terra, com juba nova e frondosa, desfilava na repartição em que trabalhava, cabeça erguida, orgulhoso sua nova aparência.  Passou aí o ter aborrecimentos causados por um colega, o Zé Chumbrega, sujeito considerado boa praça, mas excessivamente pegajoso.  Toda vez que passava pela mesa onde trabalhava o Cascalheira, carimbando os seus papéis, esfregava a mão na sua cabeleira nova, desarrumando aquele topete vistoso que passara a ser o orgulho do Manoel. Aquilo o aborrecia deveras, já que gostava de andar penteado e bem vestido, principalmente naquela ocasião que andava de olho na Maristela, uma recepcionista que trabalhava numa saleta ao lado. Um dia extravasou a sua contrariedade nestes termos:
            - Olha, Chumbrega, desde que fiz essa cirurgia, você vem azucrinando minha vida, nem mesmo tendo esperado a cicatrização completa do implante. Você também fez uma cirurgia de hemorroida há cerca de seis meses e eu ainda não futuquei o local. A sua impertinência em me aborrecer me dá igual direito. Fica, portanto, a seu critério autorizar-me a manter igualdade no procedimento. Você é quem sabe!

            Nunca mais o Zé Chumbrega esparramou o topete do Cascalheira. 

domingo, 4 de dezembro de 2016

ONDE ESTÁ A DOENÇA

Manezito Chinelo andava preocupado. De uns tempos pra cá, o Balduério, seu filho mais velho de cerca de dezessete anos, andava meio destemperado da cabeça. Ficava às vezes horas seguidas olhando para um ponto fixo qualquer. Mesmo chamado, não desviava o olhar que parecia se perder no nada. Às vezes dizia coisas sem sentido e via anjos, demônios e assombrações à sua frente, principalmente nas viradas de lua. Aconselhado pela mulher e pelos amigos, resolveu levá-lo à cidade de Gondó de Cima para uma vistoria pelo único médico que desinfetava a cidadezinha das doenças mais corriqueiras. O médico, já idoso, óculos na ponta do nariz adunco, apalpava o tronco do rapaz, que passivamente permanecia de olhar fixo no nada. Auscultava o abdome, repicava o dedo noutro órgão das partes médias, media a pressão e pressionava os rins e fígado do paciente. Menezito olhava impaciente o lavorar do médico. Até que não se conteve mais:
- Olha, doutor, o Senhor está perdendo tempo. A doença do rapaz é da tauba do queixo pra cima.


sábado, 3 de dezembro de 2016

O PALESTRANTE
Leonardo Mota, folclorista nordestino, natural do Ceará, que viveu de 1891 a 1948, dava palestras em várias cidades. Naquele tempo não havia rádios, televisões e os circos, os teatros e as palestras eram a diversão do povo. O Leota, como era chamado, gostava de contar causos. Publicou muitos livros com ditados populares, histórias regionais e expressões interioranas lá do seu ressequido Nordeste.
Numa de suas palestras, um caipira lá do Ceará se aprontou, jogou lá um perfume barato em seus pontos cardeais, pagou a entrada e foi escutar a prosa do Mota. Dia seguinte, na vendinha do canto de rua, chega um amigo que o vira na porta do teatrinho da cidade e procurou saber:
- Como é, Claudivino, então ontem você foi ouvir a palestra do Dr. Leonardo?
- É, Merenciano, estive lá.
- E gostou do folclorista?
- Heim! Fô... Facurista?
- Folclorista, Claudivino. Folclorista.
E o caipira meio desacorçoado:
- É. Isso aí eu não vi, não. É que cheguei meio atrasado. Mas o homem da palestra fala muito bonito e é muito engraçado. Até que valeu a pena!