terça-feira, 28 de julho de 2020

QUADRINHA

Eu cantei pro meu amor.
Ela gostou? Sim, eu acho!
Jogou-me até uma flor
Mas tinha o vaso por baixo.

quarta-feira, 15 de julho de 2020


NOME A ZELAR

            Porfírio Canela era o mestre da costura em Chavascal das Queimadas. Laborava com mais dois oficiais meia-agulha na rua principal da vila.
            Naquela tarde morna, tempos antigos,  chega o Reduzino Panguela, corte de casemira no vão do sovaco, procurando o alfaiate.
            - Boa tarde, Seu Porfírio. Trouxe um pano aqui pro Senhor fazer um terno para mim.
            Porfírio correu uma rabanada de olhar para a carcaça mal enjambrada do freguês e não gostou do que viu. O homem era meio empenado, não se sabe se para a direita ou para a esquerda. A espinha também tinha lá suas pendências tanto para trás quanto para frente. Porfírio pegou a fita métrica e, meio aborrecido, começou a tirar-lhe as  medidas.  O comprimento do paletó dava uma diferença considerável entre a direita e a esquerda. As mangas não afinavam uma com a outra.  Os ombros descaiam para um lado.  O comprimento da calça também divergia entre uma e outra perna. Retornou ao caderno onde anotara as medidas e inquiriu o freguês:
            - Seu Reduzino, o Senhor precisa dessa roupa para quando? -  E despejou um olhar significativo aos dois auxiliares que observavam.
            - É para o final de agosto, Seu Porfírio. Sou testemunha do casamento de minha afilhada Maria do Rosário.
            - Ih! Final de agosto?! Nóóó! Falta pouco  mais de um mês!... Não vou poder pegar seu serviço. Não vai dar tempo para acabar. Infelizmente!
            Devolveu o tecido ao pretenso freguês e comentou depois de verificar que ela já havia dobrado a esquina:
            - O homem não dá nível e nem prumo em lado nenhum!
            - Ele ia me desmoralizar aí na praça! Eu, hem! Tenho meu nome a zelar.
            14.07.2020

quinta-feira, 9 de julho de 2020


LIVRAMENTO

            Calimério Custódio era proprietário de umas terrinhas. Pequena área mas de boa qualidade, lá em Ribeirão do Sapo. Casado com Venância,  tinham um casal de filhos ainda pequenos. Naquele final de manhã, velava em sua propriedade a sua sogra, Cordelina, falecida durante a madrugada em decorrência de uns descompassos do coração, mazela da qual padecia de uns meses para cá. Desde que se casara, a sogra, viúva e sem mais filhos, veio morar com eles. Pessoa afável e boa, ajudava muito nas tarefas domésticas, na criação dos filhos e, de índole discreta, não interferia em nada na vida do casal.
            Naquele dia, num canto da varanda, Calimério narrava ao seu compadre João Vicente as suas peripécias com uma antiga namorada que retornara à Ribeirão do Sapo há cerca de três meses, período no qual reviveram secretamente um amor que já se acoitara sob a poeira do tempo.
            - Pois é, Compadre João. A danada me procurou e me provocou até que andei dando umas voltas escondido com ela por essas beiradas de córrego. Depois danou a me pedir dinheiro ameaçando contar tudo à Venância se eu não abrisse a mão. Cê sabe que minha vida de casado é boa, e que minha família importa mais do que qualquer enrolada em busca de complicações.
            Dizia isto à boca pequena, rodeando o olhar para certificar-se de que ninguém mais escutava.
            E prosseguiu:
            - Semana passada desistiu de me importunar, mas tive que liberar dinheiro para pegar um carro até São Clemente e, de lá, a passagem para São Paulo para onde retornou com promessa de me deixar em paz.
            Nesse momento, mais empolgado por se ver livre do rodilha de encrenca em que se metera, não observou a Venância chegando  e, em voz um pouco mais elevada, desabafou com o compadre:
            - Pois é, Compadre João, fiquei livre da encrenca para sempre. Era uma despesa danada! Acabou. Agora vou viver a minha vida como sempre quis: sem aborrecimentos, sem preocupação. Vida nova que segue. Graças a Deus! Foi-se embora o trambolho de minha vida. Graças a Deus!
            Venância ouviu aquilo abismada, pensando tratar-se o trambolho a que se referira o marido, de sua mãe estendida entre quatro velas na sala da casa.
            Não disse nada, retornou a passos pesados para desfazer para sempre o casamento que lhe parecia feliz logo depois do sepultamento da mãe.
            Justificativa alguma conseguiu reativar a união. A verdade, um tanto quanto tenebrosa, não sei se foi contada.
            Cada um pro seu lado, e o Calimério, a trancos e barrancos, vai vegetando de boteco em boteco pelos solavancos da vida.
            Venância amasiou-se com um sitiante lá na mesma vila e vai tocando sua vidinha miúda, com seus três filhos, um resultante da nova união.
09.07.2020


REMÉDIO MAL ARRUMADO

            Baduíno Gondó acordou naquela segunda-feira meio empenado. Seu pescoço acompridado pendia pro lado esquerdo e qualquer esforço para dispô-lo na posição correta resultava em dores e gemidos. Quinquinha Biscoiteira, sua mulher, foi avisar que o café acabara de ser passado e estranhou aquela cara virada do marido:
            - Que diacho é isto, Gondó. Tá de cara torcida?
            - Acordei assim. Acho que dormi mal arrumado e empenou meu pescoço.
            Quinquinha providenciou uma compressa de água quente e descansou na parte afetada. Nada. O torcicolo persistiu e qualquer esforço para endireitar a peça resultava em dores agudas.
            O jeito, Gondó, é ir lá na Vila e comprar um relaxante muscular na farmácia do Caburé. Toma um comprimido lá mesmo e traz mais uns três para depois. O pescoço endireita logo.
            O Baduíno que precisava mesmo ir à Vila, botou os pés na estrada. Rompeu a distância pouca e foi aviar o tal remédio. Caburé o farmacêutico prático não estava. Deixara lá um rapazinho novato para atender em seu lugar.  Gondó não lembrava mais do nome do tal remédio e, depois de algum esforço, requereu:
            -Traz um laxante aí, menino! Dos bons.
            Pediu um copo de água e engoliu o comprimido, levando mais meia dúzia pra tomar depois.
            Comprou uma garrafinha de querosene, sal e rapadura, atendendo os pedidos da mulher e retornou.
            Ainda na saída da Vila o comprimido fez efeito. Careceu de embrenhar mato a dentro para desapertar. Antes de chegar em casa repetiu o desaperto. Passou a tarde toda na casinha da latrina lá na beira do quintal. Tomou ainda mais dois comprimidos no mesmo dia e nada. O pescoço doía e os fundos não davam descanso.
            Dia seguinte, fraco, mandou a mulher pedir ao vizinho do sitiozinho acima para providenciar recado para que o farmacêutico viesse vê-lo.
            Constatado o engano, foi-lhe prescrito o relaxante, de que ainda carecia. Relutou enfezado:
            - Não, Seu Caburé. Tomo isso não. Se o laxante fez este estrago não posso tomar o tal de relaxante que o Sr. recomenda. Vai laxar a ré  que já tá afetada. Aí desgrama tudo!
            Parou com o laxante e curou o torcicolo com o tempo.

Obs: Vão dizer que não existe o verbo  “laxar”. Não existia, agora passou a existir. Se relaxante é para relaxar, laxante serve para laxar,  que significa soltar, afrouxar.
E tenho dito.





quinta-feira, 2 de julho de 2020


DEIXA QUE EU CUIDO

            O Dr. Manfredo fora chamado para atender lá na sua propriedade rural o velho Ariovaldo Canastra, acometido de uma destemperança nos intestinos que o deixara chumbado de não aguentar uma palha. Examinada a situação, o médico achara por bem aplicar uma lavagem intestinal, muito comum nos tempos antigos.
            Preparou o aparelho de clister que consiste numa bomba de borracha através da qual se injeta água morna e talvez alguma solução nos intestinos do paciente, via retal. Aquilo produz uma limpeza que, segundo se espera, desinfeta o órgão dos males que o acometem.
            A princípio o velho Ariovaldo renegou o tratamento. Não concordava em se submeter a tamanha humilhação. Diante dos argumentos do médico e da sua mulher, Dona Custódia, acabou cedendo.
            Preparado o aparelho, disposto o velho naquela posição vexatória, o Dr. Manfredo se aproximou para o cumprimento de seu mister. Foi interpelado pelo paciente, no seu linguajar peculiar:
            - Dá isto aqui, Doutor. Eu mesmo encastôo.

02.07.2020



QUARENTENA LONGA

Chiquinho Sossego seguia a passos lentos pela rua do Vigário quando avistou na janela da casa cinza o seu amigo de outros tempos, o Lindomar Cuia-Velha. Cumprimentou-o com satisfação:
- Boa tarde, Lindomar, como vai? Anda sumido!
- É, Chiquinho, tô quieto aqui.
- Sei. Com esta pandemia há que se cuidar.  Mas com cautela vou me desviando dela e levando a minha vida. Não aguento ficar quieto e dou minhas voltas.
- Pois é, Chiquinho. Você é que é feliz! Estou de quarentena há muitos anos, aliás, desde que me casei. E a pandemia está ali dentro. Dorme na minha cama, come na minha mesa.
Disse isto em sussurros,  não sem antes correr os olhos para o interior de sua casa e pôr a mão em concha à volta da boca.
Chiquinho despediu-se e seguiu pela rua a passos lentos, brisa de início de outono desarrumando os seus cabelos.