O FRAQUE
Horácio
Ganimedes era morador lá das beiras do João Inácio, localidade distante de
cerca de pouco mais de légua da Vila de São Sebastião dos Correntes.
Proprietário de uma nesga de terra, cerca de alqueire e meio, vivia com a
mulher, a Ermengarda, dependendo de algumas plantações: milho, feijão,
mandioca... e algumas criações que vendia na Vila nos finais de semana.
Naquele ano
antigo tinha projetos mais ousados. Sempre quis ter um fraque, aquela casaca
usada pelas pessoas mais importantes em dias de solenidades. E o feijão
produzira mais que o esperado. Era a oportunidade de realizar o sonho que o
acompanhava desde que deixou de ser criança. Vendido o cereal, apurou-se
quantia razoável. Com a aquiescência da companheira, adquiriu o tecido e
encomendou a peça em alfaiataria do lugar. Sonhava dia e noite com a
indumentária clássica.
Enfim, recebeu
o casaco, tal como encomendara: elegante, bonito e com aquelas duas pontas
pingentes do traseiro. Sentiu-se
realizado.
Domingo de
manhã, dirigiu-se à Vila para desfilar com a sua preciosidade. Haveria missa às
dez horas. Era a festa de São Sebastião. A patroa, por conta de uma
indisposição, não o acompanharia. Arrumou-se bem, chegou até a despejar no vão
do sovaco um perfume que ganhara num jogo de barraquinha em dia de quermesse. E
desceu rumo à Vila, vestido com a roupa nova, calça arregaçada e botina
reluzente na mão, a ser calçada na entrada da cidade. A poeira da estrada não
poderia emporcalhar a sua indumentária e a sua peça inaugurante. Estrada afora,
os conhecidos se admiravam de ver o moço elegantemente trajado:
- Olha o
Horácio de fraque!
De cada um que
encontrava ou de cada residência pela qual passava ouvia a mesma frase
admirativa:
- Olha o
Horácio de fraque! O Horácio de fraque!
Aquilo foi lhe
trazendo um aborrecimento continuado e crescente a cada vez que ouvia a
admiração dos conhecidos. Por que só ele chamava tanta atenção?... Muitos
usavam o fraque em dias de gala e passavam desapercebidos. Só ele era destacado
como se fosse um bicho raro ou uma anomalia chamativa. No povoado do Torra,
então, ouviu a expressão admirativa por inúmeras vezes. Pensou até em desvestir-se
da novidade ou retornar à sua residência lá no mato. Mas não. Na Vila dos
Correntes talvez fosse apenas admirado sem o apelo chamativo que o aborrecia.
Na entrada da
Vila, na curva do rio Correntes junto às frondes dos marinheiros, lavou os pés,
aguardou que secassem naturalmente. Calçou as botinas, desdobrou as calças e
penetrou no povoado da forma mais natural que conseguia se impor. Ouviu de
novo, várias vezes, a expressão admirativa:
- Olha o
Horácio de fraque! O Horácio de fraque!
Procurando
manter a sua dignidade, dirigiu-se à Igreja. A missa já andava pela metade.
Persignou-se na entrada, percorreu uma distância pequena pelo corredor central
à procura de uma vaga em um dos bancos do templo. Neste exato momento, o
vigário que, àquela época celebrava a missa em latim, convidou, na língua
mãe, os fiéis a rezarem:
- Orater,
frater (Orai, irmãos).
O Horácio, já calejado
pelo que ouvira no caminho, entendeu que padre lhe dirigia a expressão
repetindo o que tanto o aborrecera:
- O Horácio de
fraque!
Retirou-se,
quase bruscamente, desvestiu-se da indumentária nova e tomou o caminho de casa
para desabafar a sua tristeza junto à companheira.
Nunca
mais vestiu o fraque no qual tanto investira e pelo qual tanto sonhara. Isto é,
vestiu-o sim, anos depois quando, a pedido de Ermengarda, foi enterrado em
traje de gala.