A EXTREMA-UNÇÃO
Padre
Bertoldo pastoreava as almas humildes de São João das Cabaças. Residia num
sítio de cerca de dois alqueires nas adjacências do lugar, propriedade que lhe
foi doada por uma beata abastada. Tinha uma vida tranquila, já que o serviço da
paróquia era resumido e a vida bucólica que levava era de seu agrado, tendo em
vista sua origem rural.
Entretanto,
de uns meses para cá, passou a ter aborrecimentos em sua propriedade bem
cuidada. É que uma capivara invadia de quando em vez seu quintal, provocando
estragos, destruindo suas bem cuidadas plantações. Combinou com um paroquiano,
o Tatão Filóquio, incumbindo-o de dar sumiço no bicho. Tatão era conhecido por
apreciar caçadas regadas a muita cachaça e farofas variadas.
Naquele
início de noite chega o Tatão para descapivarar a propriedade do vigário.
Capanga de lado com a branquinha de sua preferência e a lata dos comes acompanhando.
Conversa vai, conversa vem, ficou combinado que o pároco também participaria da
tocaia, com uma espingardinha velha, chumbeira, herança de seu avô. Os
preparativos foram interrompidos pela batida de alguém à porta. Era o Percildo,
requisitando a presença do religioso com urgência para encomendar a alma de
Dona Hermengarda, sua sogra que, segundo informara, estava nas últimas, em sua
casinha na entrada da cidade. Aborrecido, relutou. Entretanto a consciência
falou mais alto. Era preciso levar o sacramento à candidata a defunta. Deixou
lá o Filóquio e foi cuidar de sua obrigação.
Na casa da
moribunda, aflito, teve que esperar um pouco até que desocupassem o quarto onde
ela se encontrava, tendo em vista que Dona Caetana preparava a doente,
higienizando-a para a recepção ao religioso. A cabeça do vigário estava lá, no
seu sítio, sonhando com a exterminação da capivara. Percebeu, que apesar de ter
uma alma bondosa e mansa, passara a manter um ranço, uma ojeriza pelas
capivaras, que chegava mesmo às raias do ódio. Seu corpo estava na sala da
enferma, mas seu espírito estava de tocaia ao animal, juntamente com o Tatão.
Liberado o
quartinho, penetrou o vigário para cumprir o seu dever de pastor. Desovou as primeiras orações. Seu espírito
continuava de tocaia no brejo de sua propriedade, ao lado do caçador. Nisto
ouviu-se, ao longe, o estampido de um tiro. O som viera dos lados de seu sítio.
Seria o tiro do Tatão. Ainda orando e benzendo a doente, passou a liberar o que
invadia o seu espírito anticapivarístico:
- Morre,
desgraçada! Vai para o quinto dos infernos! Pra deixar de ser besta!
E traçava no
ar a mão em forma de cruz ante o corpo da enferma, ainda vociferando:
- Morre,
excomungada! Morre logo, praga ruim! Nunca mais vai comer às minhas custas!
Voltou a si
quando foi arrastado e expulso pelos familiares da doente. Nenhuma explicação
posterior justificou seu ato. A doente faleceu naquela mesma noite e deixou uma
desconfiança de seu procedimento junto aos familiares.
A capivara
continua lá. O Filóquio errou a mão na cachaça e no tiro.