quinta-feira, 17 de janeiro de 2019


TRATO FEITO

            Panicácio das Couves laborava ao lado da única agência bancária
de Porteira da Encruzilhada. Produzia com muito critério suas verduras e legumes num sitiozinho próximo e trazia diariamente os seus produtos para satisfação dos moradores do lugar. Folhas verdes, legumes frescos sem qualquer agrotóxico. Tudo regado a água transparente de córregos empedrados que cortavam sua propriedade.
            Naquela manhã chega o Ludumiro Tiborna em ares desconfiados. Rodeia o Panicácio como quem quer comprar alguma coisa. E solta a proposta indecorosa:
            - Parceiro, você pode me emprestar trinta cruzeiros? Pago, no mais tardar, na próxima terça-feira.
            Panicácio, que conhecia o indivíduo, tido como mau pagador, matutou por um instante, coçou a base da nuca e disparou:
            - Olha, Seu Tiborna. Eu até poderia arrumar o dinheiro mas estou impedido por força de um contrato que firmei como Banco aqui do lado. Eu não posso emprestar dinheiro e nem o Banco pode vender verduras e legumes. E, como você sabe, eu não sou de cachorrar com ninguém.
            O Tiborna saiu calado. Por dentro expelia nuvens de marimbondos e grilos.


SUTILEZA

            Claudovino Gondó, nordestino lá das quebradas do Ceará,  procurou o Dr. Samuel Prancha por conta de uns descontramantelos que passou a sofrer nos últimos dias.
            - É, Doutor, é uma dorzinha fina que começa lá na cacunda e responde cá no vazio. Tenho dormido pouco e não tô conseguindo trabalhar.
            Avaliado o quadro, o médico determinou a imediata internação do paciente para ser submetido a uma cirurgia. E de urgência.
            A intervenção saiu a contento e uma semana depois o Gondó foi liberado com a seguinte recomendação.
            - Repouso absoluto, dieta leve – e prescreveu sopas e alguma coisa mais de que pudesse alimentar- e retorne em quinze dias para uma avaliação mais detalhada do seu estado.
            O paciente retornou na data marcada, acompanhado da Marinalva, sua esposa, e sua situação era satisfatória. O médico apenas recomentou:
            - Por mais quinze dias evite carregar peso e mingue a cachaça.
            O Claudovino passou um olhar safadoso na Marinalva e disparou, com seu linguajar peculiar:
            - Doutor, e eu posso deitar na rede com dois par de chinelo por debaixo?


SURPRESA NO CANECO

            Múcio Barroso e Totó saíram para caçar pacas. A noite estava escura e a caçada não fora proveitosa. Nada encontraram. Andaram, beberam, comeram os tira-gostos e nada de caça. Por fim, cansados e sedentos, procuraram um córrego pequeno, um chavascal, para onde se dirigiram para aplacar a sede de ressaca de cachaça. Múcio foi à frente e encontrou, na escassez do regato, um ponto onde se acumulava alguma água, que foi recolhida num copo e sorvida com sofreguidão. Totó aguardava ao lado e requereu do companheiro:
            - Pega uma caneca destas para mim aí também.
            Múcio recolheu a água e passou o caneco de alumínio amassado ao colega. Totó, ressecado e ressacado, sorveu o líquido com avidez. No fundo encontrou um objeto estranho. Era a dentadura do Múcio que jazia no fundo, colocada de propósito pelo amigo. Amigo? Sei não...
            Totó arremessou o copo e seu conteúdo esdrúxulo para a baixada do brejo, entremeado de um palavrão impublicável.
            Manhã seguinte, Múcio e um companheiro, o Totonho Cachaça, munidos de enxada pá e peneira, escarafunchavam o brejo à cata da prótese extraviada.
            Se a encontraram não posso informar. Perguntem ao próprio Múcio.



SATISFEITO

As famílias antigas, quando seus filhos iam visitar algum parente ou  amigo, sempre faziam inúmeras recomendações de como deveriam eles proceder em casa dos outros. Primavam para que as crianças não as envergonhassem, principalmente às refeições. E foi debaixo de inúmeras preleções que Balduíno Pascácio, menino de cerca de dez anos,  se deslocou para passar aquela tarde de domingo na fazenda de seu padrinho, Alfredão Canastra, fazendeiro dos antigos. O passeio, até certa hora, transcorreu dentro da normalidade: brincou com meninos da fazenda, os filhos do padrinho e outras crianças dos arredores.
Foram chamados para o café da tarde. Mesa posta. Biscoitos, roscas, bolo de fubá e demais iguarias denotavam a fartura da merenda. Balduíno correu o olhar guloso sobre tudo. As brincadeiras e a pequena viagem que empreendera avivava-lhe a fome. Ademais não estava acostumado com tanta iguaria de boa qualidade. Mas... - sempre tem um mas - lembrou-se da recomendação de sua mãe:
- Olha a falta de educação!
Comeu apenas uma rosquinha e um biscoito. A vontade era, pelo menos, provar cada iguaria daquela mesa farta. Sorveu o resto do café e deixou a xícara vazia ao lado. Juntou as mãos sobre os joelhos e aguardou a hora certa de sair da mesa. Os demais meninos se deliciavam com os sequilhos bem ali à sua frente. Ele apenas apreciava. O padrinho, no seu linguajar peculiar, oferecia-lhe as guloseimas:
- Come, menino. Cê tá doente?
E Balduíno relembrando o que ouvira da mãe, despachou na mesma expressão sempre usada por ela:
- Brigado, Padrinho, mas já tô de rabo  cheio.


QUERELA NO BUTECO

            Encontrei-me com Custódio Praxedão ontem na praça principal de Peneira Velha que, mais ou menos nesses termos, me relatou uma querela em que se envolvera dias atrás com Placidino Caixote:
            - Olha, companheiro. O Senhor me conhece de muito e sabe que não sou de aturar conversa fiada e nem tampouco levo desaforo pro meu rancho. O Caixote, metido a besta, não sei se tocado por uma ou duas cachaças, deu de me desonrar lá no buteco do Muquiça, logo na minha própria presença. Pedi que maneirasse o palavreado e desse as provas de que dei calote aqui neste comercinho. O homem me desacatou e tive que usufruir de minha habilidade brigativa. O caldo ferveu e entornou. Larguei nele um cangapé, daqueles que só eu sei o segredo. O homem voou uns quatro metros e voltou irado feito uma cobra na queimada. Aí fui obrigado a soltar a pá do braço direito na panela de seu ouvido. O Caixote rodou feito um pião, pegou o prumo de novo e investiu outra vez. Soltei nele a sola da botina bem na tampa do bucho. O homem arrotou choco e desovou a gororoba do almoço, emporcalhando o piso do buteco. Catou o ar com a fuça já inchada e partiu pra cima, esta pela última vez. Liberei um rabo de arraia que aprendi no cais da Bahia ele pegou voo e saiu pela janela, estatelando a cacunda no calçamento da rua. Lá mesmo dormiu e até roncou.
            Ouvi a conversa e não dei qualquer opinião. E o Praxedão concluiu:
            - Tô sabendo agora que o Caixote quer até me agradecer por uns benefícios que lhe fiz. A orelha esquerda dele, aquela afetada pelo tapão, desentupiu na hora e ele passou a ouvir como nos tempos de menino.  Aquela cacunda curvada que deu a ele o apelido de “camelo”, desempenou de vez e ele agora anda empinado que nem um galo chefe de terreiro.
            Passeei a mão pela base da nuca e despedi-me sem mais palavras.
           


PROBLEMA DE PRESSÃO

            Godofredo Tatão era um tipo coronel lá no Sertão dos Cafundós. Vivia a seu modo, mandando e governando o lugar. Já com seus setenta e muitos anos, gabava-se de ter uma saúde de ferro. E era mesmo muito forte e saudável.
            Naquele fim de manhã, procurou na cidade próxima, Coronel Praxedes, o Dr. Garibaldo, médico estabelecido há anos no lugar. Foi inquirido pelo médico:
            - Coronel, a que devo a sua visita?
            - Doutor, estou me sentindo meio fracassado. Sei que estou com a pressão muito  baixa.
            - Pressão baixa? O que você tem sentido? Tonturas, desmaios ou...?
            - Não. Não estou sentindo nada. Mas sei que não estou bem.
            E o médico, meio intrigado:
            - Não estou entendendo! Você mediu a sua pressão? Por que você acha que está baixa?
            - Olha, Doutor. Eu tinha pressão alta. Era uma beleza! Agora estou me sentindo como se estivesse no fim de meus dias.
            - A pressão alta, em geral, é mais perigosa do que a pressão baixa. Mas me diga: Por que você está aqui?
            - Olha, Doutor. Eu soltava meus gases e era cada tiro que a patroa até reclamava quando havia visitas em casa. O tiro retumbava pela casa toda. A Clodoalda achava que aquilo era uma falta de educação. Agora, de uns tempos pra cá, é aquele sopro relaxado, um “froooopu” sem graça, que não se ouve nem mesmo na sala ao lado.
            O Dr. Garibaldo coçou a base da nuca e sorriu lá no seu interior. Se receitou alguma coisa constritiva não se tem notícia.
           


PELE MAL COZIDA


Múcio Barroso andava pelos matos com outros companheiros, não sei se caçando ou pescando.
Hora do almoço, fizeram uma farofa de carne, queijo e ovos. O tempero andava a contento, mas o Múcio encontrou no meio da farinha um pedaço de pele de porco mal cozida e labutou com ela por alguns minutos, não dando jeito de desmanchá-la. Maldoso, despistadamente retornou com a pelanca para a panela. Um companheiro serviu-se de novo e foi agraciado com o trambolho. Mascou, mascou, mascou... Depois lançou o estorvo fora reclamando:
            - Há cinco minutos estou labutando com essa pele e não dei conta dela.
            E o Múcio, cara lavada:
            - Masquei essa coisa um tempão também e resolvi descarta-la aí.


PAPO DE BUTECO

            Costinha, para quem não conhece, é amigo nosso e assalta a gente toda noite num buteco (boteco é o certo, mas é mais feio) ali debaixo do antigo Hotel Amparo. Lá se reúnem amigos e outros vagabundos para um papo no final do dia, regado a cerveja e pinga de boa qualidade.
            Nesta quarta-feira, o Costinha, que de costume limpa o bar na parte da manhã para abri-lo para o público à tardezinha e à noite, enquanto fazia a higiene do local, deixou uma carne cozinhando para o tira-gosto. Esqueceu-se dela e foi embora, sendo avisado mais tarde de uma fumaça negra que saia do estabelecimento. Voltou às pressas ao local e constatou que a iguaria estava irremediavelmente perdida, queimada, um carvão no fundo da panela. À noite, um cheiro de fumaça e esturrado infestava o local.
            Muito bem. Ontem, sexta-feira, como de costume, a pinga e o tira-gosto foi solicitado. O torresmo havia passado do ponto na fritura. Mais moreno do que o habitual. Questionado, o Costinha justificou que foi uma ligeira distração enquanto organizava as bebidas na geladeira.
            Solemar, outro nosso amigo, que também não presta, frequentador assíduo do lugar, sabedor do acontecimento anterior, ou seja, a carne queimada, e vendo o torresmo também fora de ponto, manifestou-se nestes termos:
            - É!  O Costinha tá mudando de ramo. Acho que agora é carvoeiro.
            E o buteco continua lá para escutar as conversas-fiado nossa e de nossos amigos.
            Ainda bem.


PALPITE NO BICHO

            Princípio do Século passado. Um governador de um Estado do Nordeste, e se não me falha a prateleira do lembramento, precisamente o Estado de Alagoas. O homem era afeito a uma fezinha no jogo do bicho. Quando não tinha seus próprios palpites, recorria ele à sua cozinheira que sempre lhe contava algum sonho ou acontecimento que lhe sugerisse o bicho no qual deveria apostar.
            Naquela manhã, à mesa do café, foi interpelado pela Dona Zefina, a cozinheira, com seu linguajar cascudo:
            - Olha, Doutor, acho que o Senhor hoje pode mandar jogar no trigue.
            - O tigre, Zefina? Mas por que este palpite?
            - Pois não é que sonhei a noite toda que tava fazendo pão de ló para o Senhor!
            - E o que tem o tigre com pão de ló, Zefina?
            - Oxente! Pois o pão de ló não é feito com farinha de trigue!?
            O governador mandou fazer a aposta no bicho sugerido. E não é que deu o tigre naquele dia!
            Vá lá entender os desígnios da sorte!...


O VELÓRIO

            Placidino Cangalha enfim descansara de longa enfermidade. A família chorosa velava o seu corpo na sala modesta de sua residência, na periferia da Vila Três Cabaças. A cachaça corria farta, como de costume nessas ocasiões. Alguma coisa de se beliscar era servida de quando em vez naquela noite fria de junho.
            Tocado a cachaça e em passos incertos chega para a obrigação social o Clemente Pé Inchado. Talvez mesmo em busca de reabastecimento e satisfação de seu vício, há muito petrificado. E com a vantagem: ali a calibrina era servida sem quaisquer ônus. Chegou manso, vergou o corpo na porta de entrada e cumprimentou os parentes, já pesquisando com o olhar guloso onde poderia estar a garrafa. Encontrou-a sobre a mesa, na cozinha e, sem cerimônia, já se serviu de uma dose generosa. Retornou à sala onde repousava o falecido e ali teceu vários elogios à sua figura. Comentou sobre a sua bondade e acabou fazendo algumas revelações sobre o gosto do Cangalha por um rabo de saia, o que desagradou os filhos e constrangeu a viúva que chorava à cabeceira do defunto. Repreendido por alguém, disparou mais a metralhadora de sua língua indiscreta:
            - Falo mesmo! Falo e provo: o Cangalha foi o maior mulherengo que já vi. Não perdia vaza. Bobeou tava no seu bico.
            Foi afastado para o quintal da casa enquanto era repreendido por alguns amigos da família.
            - Cala essa boca, Pé Inchado. Respeita a ocasião e a família do falecido!
            Passou pela cozinha quieto, como se tivesse ouvido os conselhos. Bebeu mais uma e voltou à beira do caixão. Olhou para a figura pálida do morto e deixou escapar:
            - Eh, Cangalha. Cê era mesmo o tal! Se aparecesse por aqui os filhos que andou espalhando pelo mundo, a casa não ia caber.
            E disparou uma cargalhada como uma rajada de metralhadora.
            Foi posto para fora aos arrancos e empurrões. Viu-se livre e ainda voltou-se à porta da residência e disparou em com sua voz encachaçada:
            - Olha, pessoal. Pega seu defunto e enfia lá nos seus ...! – E nomeou o lugar.
            E a passos claudicantes perdeu-se na escuridão da noite. Como um fantasma embriagado.


O VALOR DA EDUCAÇÃO

                Manuelito Cavaco lavorava num nesga de terra de propriedade de sua família. Cerca de um alqueire de terra. Seu pai, Custódio Miquelino, sensato, aconselhava:
            - Vai estudar, Manuelito, dizem que a Escola lá na Vila está ensinando adultos. É de noite e dá para ir depois da lida aqui. Aprender é bom. Pra mim faltou tempo e não sei nem rabiscar o nome. Mas ocê ainda é novo, rapaz. Estuda.
            O rapaz relutava.
            - Ah, meu pai, estudar pra quê?  Vou viver é da enxada e da foice mesmo. Aprender não vai ajudar em nada.
            - Olha, meu filho. Estudar vale a pena. Já viu o Orozimbo Cuité? Ele assina o nome e toda eleição ganha uma botina ou um corte de calça. Bem que vale! Bem que vale!


O OLHAR SEDUTOR
Da série Encontros Casuais

            Seria metade da manhã. De repente, ao longo da Av. Brasil, deparo-me com uma figura que vinha ao meu encontro. Estaco-me à sua frente e só aí ela me nota.
            - Parece que eu te conheço! Ou é engano meu?
            - Acho que me conhece sim. Eu, pelo menos, sei quem você é. Não é aquela que trabalhava lá na Cia. Telefônica, a Percilda?
            - Sou eu mesma. E você trabalhava lá no Banco, não é? É o Arnon.
            Nos abraçamos formalmente entre as conversas próprias de ocasiões semelhantes.
            - Você continua a mesma, Percilda. Bonita, elegante como sempre foi.
            Ela empinou a carcaça já subjugada pelo tempo e sorriu largo.
            - Nada, amigo! Já não sou o que era! – E despencou sobre mim um olhar sedutor que nos tempos passados eu aguardei e nunca veio.
            Lembro-me que ela era namoradeira, mas sempre me esnobava, preferindo outros. Reconheço que nunca fui lá um Alain Delon, mas tampouco os outros com quem ela saia. Diversificadamente.
            Teci-lhe alguns elogios, falsos como o beijo de Judas.
            - Você continua a mesma, menina! (Olha a ironia). Elegante e linda como sempre foi. Uma verdadeira uva! (Pensei comigo: uva passa).
            Ela sorriu com verdadeira satisfação e ainda com um olhar mais sedutor, prontificou-se a me deixar seus contatos:
            - Anote aí meu telefone e me liga. Vamos nos encontrar para lembrar os velhos tempos.
            Procurei nos bolsos e anotei no único papel de que dispunha o número por ela fornecido.
            Despedimo-nos com a promessa de um breve encontro. Dobrei a primeira esquina e verifiquei que anotara o número, por acaso, num desses cartões de agradecimento distribuídos em porta de igreja após missa de sétimo dia. Lancei o papel embolado no primeiro latão de lixo à minha frente e resmunguei com meus botões:
            - Dois defuntos!
            Arrastei a minha carcaça para casa não sem um sorriso disfarçado, uma espécie de vingança que o tempo lhe trouxera. Pouco importa que eu também fora vítima dele.



O ELEITOR

            Pedro de Neusa, muitos de vocês se lembram dele. Conheci-o muito jovem, quando ainda trabalhava. Vinha à cidade acompanhado de seu pai, o Bernardo. Tinha um irmão de nome Isnard que desapareceu daqui.  Nunca mais soube que rumo houvera tomado.
Mas vamos ao que interessa.
Numa véspera de eleição, década de sessenta, chega ele ali debaixo de uma daquelas árvores enormes que havia na praça da Igreja e me confessa:
- Já ganhei um par de botinas da turma da UDN e um corte de calça do PSD. Lavei a égua. E não vou votar em nenhum dos dois candidatos.
E num riso escancarado entre várias falhas de dentes encerrou a conversa:
- Eu sou analfabeto.
Sumiu na esquina do Hotel Amparo deixando comigo um sorriso amargo de fim de tarde sem sol.


O COBRADOR

Pedrelino Grilo bebia suas cachaças na venda de Zé Torresmo e, como de seu feitio, arrastava queixo contando vantagens de brigas e desaforos que, segundo afirmava, nunca levava pra casa.
            Nesse fim de tarde, depois de uma ou duas, ainda sóbrio, foi-lhe proposto pelo vendeiro dirigir-se até uma rua adjacente e cobrar umas contas de Zenóbio Praxedão que, além de mau pagador, era também metido a bravo.
            - Vai lá Grilo, e vê se recebe essas contas pra mim. Aí estão os vales que ele assinou e o total neste outro papel. Acho que você é o homem indicado para fazer essa cobrança. Além do mais, ainda lhe molho a mão com algum para irrigar o seu fim de semana na cachaça.
            O Grilo empinou a carcaça mirradinha e prontificou-se para a empreitada.
            - Pode deixar que daqui a pouco volto com o dinheiro.
            Quebrou a esquina próxima e dirigiu-se à casa do Zenóbio. Cerca de quinze minutos depois volta ele, carcaça arqueada, cabisbaixo e relatou assim o ocorrido:
            - Olha, Zé Torresmo, o homem hoje andava atacado. Mal lhe falei nas contas ele me jogou na cara uma dividazinha de  vinte mirréis que ele  garantiu ter me emprestado há anos atrás.  Tive que escarafunchar meus bolsos e apurei dezoito mirréis que, segundo ele, em dia de bondade deixava ficar por aquilo mesmo. Não me jogou escada abaixo porque não esperei.
            - Quer dizer que ele não pagou o que me deve... Safado, caloteiro! E cadê as contas que você levou?
            O Grilo, olhar baixo, envergonhado, resmungou:
            - Aquela peste fez eu comer os papéis todos, Zé Torresmo. Até aquele ferrim que vinha prendendo um no outro.
            Retirou-se murcho como uma flor vencida e foi beber fiado na venda do Mané Bola. Certamente para digerir os papéis e o clipe.


O BICHO IMORTAL

            Dr. Francisco Mourão, médico na atualidade aqui em Sabinópolis, mais conhecido como Chicão, quando menino, saia com seus irmãos e primos para caçar passarinhos e o que aparecesse à frente. Enquanto os outros levavam de estilingue procurando suas caças, o Chicão embrenhava-se nas matas e capoeiras fazendo armadilhas para suas presas. Era arapucas, quebra-cabeças e mundéus, este último para caça mais graúda.
            Numa dessas feitas, dia seguinte, foi o Chicão pesquisar o que havia caçado. Achou em um quebra-cabeças uma cabeça de nhambu chororó.  Algum animal, durante a noite, achando a presa liquidada, fez a sua ceia, deixando lá apenas a o que se prendera na armadilha. Levou o “troféu” para casa e, todo satisfeito, comunicou ao pai:
            - Olha, pai, este nhambu caiu na armadilha e conseguiu fugir. Ainda que tenha deixado a sua cabeça presa na armadilha. Olha que bichinho danado!
            Augusto Afonso olhou de lado e concordou.
            Um sorriso antigo escorria do canto de seus lábios.

(Causo verídico, contado por Rui Afonso e registrado agora com a autorização do protagonista da história).


MINHA VIDA MUSICAL

Nunca neguei a ninguém que sempre fui versado em cantorias. Conheço muitas músicas populares e canto, modéstia à parte, bem. Não chego a ser um Frank Sinatra, mas me aproximo muito dele. Nos meus tempos de juventude nunca pagava para entrar nos bailes e nas horas dançantes de minha cidade. Chegava à porta, de terno e gravata como se exigia à época, e anunciava ao porteiro:
            -Não vou pagar e vou entrar.
            Era repelido até que eu anunciava:
            -Ou vou entrar ou vou cantar boleros aqui na porta a noite inteira.
            Invariavelmente entrava sem pagar. Acho que o pessoal do clube não queria concorrência com o conjunto mequetrefe que haviam contratado. Gente de nível fraco mas, enfim, ganhava para fazer a festa.
            Minhas serenatas eram memoráveis. Era costume no interior se cantar nas portas das casas das moças do lugar. Fiz sucesso que duvido que alguém faça. Lembro-me de uma vez que me jogaram flores. Coisa mais linda... Pena que anexo viera o vaso que não me acertou por questão de sorte. Mas relevei em virtude da boa intenção e continuei a expelir as minhas canções pelas ruas da cidade.
            Numa certa investida, consegui fazer a feira para uma semana. Achei a deferência um pouco estranha mas, enfim, cada um se manifesta da maneira que entender mais apreciativa. Atiraram-me legumes e frutas que deu para a feita de mais de quinze dias. Era laranja, tomate, batatas, repolho e melancia. Só achei exagerado quando me atiraram uma abóbora d’água, de uns oito quilos, lá no nordeste conhecida como jerimum. Dia seguinte era aquele alvoroço na cidade. Fui por inúmeras vezes notificado para cessar as minhas investidas de trovador. Acho que por força do sobrinho do Prefeito que tinha um conjuntinho vagabundo e que temia a minha concorrência.
            Agora, depois de um tempo, já maduro nas minhas opções, resolvi reviver aquele tempo: vou voltar a desovar as minhas cantorias pelas ruas da cidade.
            Salve-se quem puder!


MARCAÇÃO CERRADA

            Amaral, aquele mesmo volante que jogou no Palmeiras foi, pela Seleção Brasileira,  disputar um jogo contra a África do Sul. Véspera da partida, passeando pelas ruas da Cidade do Cabo com um colega também negro, ouviu dele uma frase apreensiva:
            -Pode ser que a gente tenha algum problema aqui com o apartheid.
            Era a primeira vez que o Amaral ouvia aquele substantivo. Mas não se intimidou:
            -É só o Professor determinar que eu fervo nele e ele nem vai andar em campo.


LUADO
A lua não existe. Não do jeito que vocês entendem: um satélite de substância compacta, arenoso, pedregoso e o mais que fizeram a gente crer. Também é conversa fiada o que se diz sobre descida lá de naves de americanos e russos. Pura lorota para ostentar poder por ocasião da guerra fria.
A lua é apenas uma energia luminosa, complexa, ainda não bem desvendada pelo ser humano. Estudos mais recentes orientados por mim e com a minha fraca assessoria, nos levaram às conclusões que vou passar a relatar. Observamos que as noites de luar são bastante diferentes considerando os locais onde a gente se encontra. Observamos que, por exemplo, aqui em Belo Horizonte quase não se percebe a beleza de uma noite de lua cheia. Já em Sabinópolis, destaca-se o luar. Entretanto, vê-se que a beleza da lua é ainda mais intensa quando observada de locais mais ermos como uma casinha lá nos fundões do mundo. Aí, sim, resplandece toda a sua beleza com seus raios de prata ilustrados por borbotões de estrelas.
Munidos de compasso, régua, prumo, nível, lamparina de querosene e outros instrumentos também de tecnologia apurada, com base nas observações já relatadas, chegamos à seguinte conclusão: a lua tem um poder de troca. Recebe a essência da maldade humana e devolve aqueles raios que todos nós conhecemos. Só que o que sobe da terra, a poeira da ruindade, ofusca os raios que descem do astro luminoso. Daí a razão da beleza variável do luar. Naqueles cantinhos do mundo a lua impera absoluta, sem o estorvo da maldade que por ali não habita. 



INCIDENTES NA SEMANA SANTA II

            O povoado de Lagoa do Jacaré estava eufórico. Era a primeira vez que assistiriam à encenação do Calvário, ao vivo, com atores locais.
            A praça da Igrejinha fora toda preparada para a cerimônia. Da esquina de uma rua próxima vinha o séquito tendo Jesus à frente, carregando a cruz, ladeado pelos soldados romanos, todos bem caracterizados, castigando o Salvador. De um alto-falante o vigário narrava os fatos. Jesus chegou ao ponto pré-preparado onde o fixaram na cruz que foi erguida e instalada num buraco já cavado anteriormente. Subiram com o lenho, com o ator amarrado pelos braços e pernas. E ouviu-se um suspiro de comoção em toda a praça. Jesus agonizava frente à multidão.
            De repente um grito do Salvador:
            - Segura, segura, segura...
            E a cruz, mal afixada, foi tombando lentamente para a frente e o pobre Jesus Cristo deu de cara e corpo com a poeira do chão, tendo ainda o peso da cruz na sua retaguarda.
Só deu de si depois de uns quinze dias num hospital da cidade mais próxima.


INCIDENTES NA SEMANA SANTA

Na Vila dos Urubus, a Via-Sacra representada por atores do lugar, era o ponto alto da Semana Santa.
Pela rua principal, seguia a multidão ao lado de Cristo, um jovem do lugar, o Jacinildo, estudante na capital. Carregava uma cruz que parecia pesada, embora de tábuas leves, em estrutura oca. Ao seu lado, os soldados de Pilatos, bem caracterizados, açoitavam o Salvador. Entre eles o Joaquinzinho Torresmo que não apreciava o Jacinildo, tendo em vista que gostava da mesma jovem que o estudante começara a namorar.
E a multidão seguia contrita, observando a cena comovente.
Cada soldado, de quando em vez, lapeava o Cristo com seus chicotes, atingindo a túnica do ator. Já o Torresmo batia mais concretamente, o que obrigou o Jacinildo a repreendê-lo, reclamando entre os dentes:
- Manera aí, Torresmo. Tá doendo!
O soldado descarregava a sua antipatia contra o Cristo, batendo de modo efetivo.
Umas duas ou três vezes mais, a mesma reclamação do Cristo:
- Para, Torresmo, você está passando dos limites.
Inútil o protesto. O chicote dizia ao que veio.
Depois de mais uma chibatada, o Cristo escandalizou a comunidade: lançou de lado a cruz e investiu contra o Torresmo, de porte franzino, que não teve outro recurso senão correr entre as alas da procissão. E o cristo, de túnica levantada, corria atrás e vociferava:
- Espera, desgraçado, que eu vou te mostrar como se bate! Espera que eu te pego!
O povo da Vila dos Urubus até hoje comenta este acontecimento, embora transcorrido mais de cinquenta anos dos fatos relatados.




FORRÓ DO GERSON

            Amaral, aquele jogador do Palmeiras e da seleção brasileira é que narra o fato, acontecido em Recife.
            Durante o traslado do aeroporto até o hotel, vislumbrou ele um galpão e a placa tentadora: “Forró do Gerson”. Domingo à tarde, após o jogo, reuniu-se com outros dois colegas que procuravam um lugar para divertir. Aí o Amaral lembrou-se do que vira no dia anterior e propôs aos amigos:
            -Vamos lá no Forró do Gerson. O ambiente parece ser bom. É lá no final daquela praia por onde passamos ontem quando viemos do aeroporto.
            Deram sinal para um táxi e determinaram o objetivo:
            -Toca lá para o Forró do Gerson, no final da praia.
            O motorista ainda ponderou que não havia casa de forró para aquelas bandas mas, ante a insistência do Amaral, cumpriu a determinação matutando:
            -Se vão me pagar, paciência!...
            De longe o Amaral vislumbrou o seu objetivo: um galpão amplo, bem no final da praia.
            -É ali, amigo.
            Ainda dentro do veículo foi esculhambado pelos dois colegas sob os risos do taxista.
            A placa iluminada na parte superior do galpão justificava a ira dos colegas e o riso solto do taxista. Em letras enormes e bem lavradas anunciava:  “FORRO DE GESSO”.
            Foi obrigado a arcar sozinho com as despesas do traslado. Ida e volta.
           
           


É PARA CASAR?

            Os tempos eram os antigos.
Manezinho Custódio passeava na praça principal da cidade, banzerando, à procura de uma paquera. Viu Ritinha Pé-de-Valsa que derramou sobre ele um olhar disminlinguido. Atacou em seguida, sabendo que a menina era conhecida como uma pia-de-água-benta, ou seja, daquelas que todos passam a mão.
            Mais tarde, já na porta da casa da menina, atracado como se requer nessas ocasiões, foi surpreendido pelo pai da garota, o Zé Cavaco, homem severo, cujo sonho era casar a moça para evitar maiores preocupações já que ela, de muito, era mal-falada no lugar.
            - E aí, rapaz! E essas liberdades com minha filha?!... Você está namorando pra casar ou pra que é?
            O Manezinho, meio desconcertado, procurando se refazer da situação constrangedora:
            - É, Seu Cavaco, é só para o “que é”.
            E desfez-se na noite, como um fantasma surpreendido pelo sol.         


CONTRAPESO

            Não me ocorre mais o seu nome completo. Era Zé de Tal. Sei que morava lá pra baixo, na beira do rio Guanhães, cerca de duas horas de caminhada da cidade de Sabinópolis.
            Naquela manhã, por volta das dez horas, chegou à venda de Nilo Lapinha para pagar uma continha da semana anterior. Aproveitou e ofereceu ao vendeiro uma abóbora avultada que trazia dentro de um saco de algodão encardido, expondo-a no balcão do comércio. Nilo olhou o legume e o achou exagerada para o consumo de sua família. Viu um volume bem menor dentro do saco e perguntou se aquela abóbora também não estaria à venda.
            - Aqui não é abóbora, não, Seu Nilo. É uma pedra.
            E retirou do saco uma pedra rolada, destas que aparecem nos leitos dos rios.
            Foi inquirido pelo comerciante:
            - Pra que isto, Seu Zé? Tá vendendo pedra agora?
            - É pra firmar  – respondeu, sem maiores explicações.
            Pôs os dois volumes dentro do saco, amarrou bem a boca, jogando a carga sobre o ombro, distribuindo o peso: a abóbora junto ao peito e a pedra sobre as costas. Quebrou a esquina da rua sob o olhar patético de Nilo e seus fregueses. Foi procurar em outras bandas quem lhe aliviasse o peso.
           


COMIGO NÃO

Coronel Capistrano Generoso, que não era coronel, tampouco generoso, abastado e influente, viu se aproximando de sua propriedade, uma casa rural nas proximidades da Vila dos Carrapatos, o Josué Panela, conhecido por suas investidas em favor das comunidades locais.  Pensou com seus botões:
            - Coisa boa não é!  Vai querer algum adjutório para a Igreja ou para outra coisa qualquer. Nunca chegaram aqui para me dar nada. Só aparecem para pedir. Aff!
            O Josué chegou, foi recebido com certa desconfiança, mas mesmo assim foi convidado a entrar e se abancar. Depois de uma caneca de água, disse ao que veio:
            - Pois é, Coronel, estou aqui para requerer fundos para os jovens desassistidos da Via dos Carrapatos.  Pensei no Senhor que sempre foi generoso, até no próprio nome.
            O coronel empertigou-se, fitou o Panela nos olhos e disparou:
            - Quem você pensa que sou, rapaz? Vê lá se sou homem de liberar meu fundo para estes jovens daqui da Vila. Pede sua mãe para liberar o fundo dela para esta corja de vagabundos. E saia já daqui antes que eu perca o resto de minha paciência.
            O Josué saiu murcho sem sequer olhar para trás. O Capistrano sorriu leve, só na alma, e pensou com seus botões:
            - Mais um que não levou nada deste velho esperto.
           


CINEMA


Estive pensando hoje uma coisa: Holywood (é assim que escreve?) anda meio fracassado. Talvez pela desaceleração da economia americana ou mesmo porque a fórmula tenha cansado. Também já não existem mais atores e atrizes que se endeusaram no cinema dos EEUU. Morreram os John Weismuller (Tarzan), a própria Chita, a Jane, a Débora Reinolds, Grace Kely, o John Waynne, o Rhandolf Scotty e outros mais, todos ícones na nossa juventude. Alguns outros, machões do faroeste ou dos filmes policiais foram declarados homossexuais. Nada contra, mas perderam aquele encanto junto ao público.
Muito bem. Entendo que o ambiente propício para o desenvolvimento do cinema, na atualidade, encontra-se aqui. Isto mesmo. No Brasil. Para filmes de terror basta procurar os postos de saúde do SUS. Nem é preciso pagar os personagens ou os figurantes. Estão todos lá. Disponíveis. Para os bang-bang, é só instalar câmeras nas favelas do Rio, mesmo em Copacabana, Ipanema ou em qualquer rua ou avenida de qualquer cidade, principalmente as de maior população. Aliás, nem precisa instalar as câmeras. Elas já estão instaladas, flagrando os tiroteios e os afanadores em qualquer esquina de qualquer rua. 
Agora, para os filmes de comédia, sugiro que os cineastas se dirijam a Brasília. O Senado Federal e a Câmara dos Deputados já nos propiciam esta modalidade de diversão com enredos prontos e personagens reais. E, para não se tornar enfadonho, os enredos cômicos se mesclam com temas próprios dos filmes de Al Capone. Gangsters não faltam?: Sarney (o capo), Renan, Collor, Temer (ou seria o verbo temer = ter medo, pavor). Alguns foram engaiolados, mas continuam esperneando, procurando trabalho para se livrarem do xilindró. Para filmes de ficção, basta mostrar as obras da PresidentA e as promessas do molusco, seu antecessor. O PAC então é um prato cheio. Assim, acredito que aqui, no momento atual, encontra-se o ambiente propício para o desenvolvimento do cinema realidade. E vem aí a Copa que poderá dar uma pitada estrangeira às películas brasileiras.



CARO COLEGA

Filistrônio Chapadão morava na vilazinha de Coité de Baixo. Bem-quisto na comunidade, trabalhava de ferreiro e, proprietário de cerca de meio alqueiro de terra,  cuidava de uns três cavalos, animais pelos quais curtia grande afeição.
Doutor Pancácio, médico do lugar, naqueles tempos já consumidos pela fumaça, atendia sua clientela na zona rural pilotando um dos dois cavalos que possuía: o Castanho e o Andorinho. O primeiro era mais valente, preferido pelo médico nas suas por jornadas mais longas. O outro, o Andorinho, era mais macio na sua andança, embora mais frouxo para trabalhos mais extensos.
Nessas indas e vindas, atendendo à clientela nas comunidades mais distantes, o Castanho adquiriu uma pisadura, uma ferida no lombo, pelo uso contínuo de sela mal encaixada. Foi necessário cuidar de suas feridas. E o mestre nesse ofício era o Anfilóquio Porfírio, que conhecia panaceias e emplastros que, segundo os entendidos, recuperava a ferida do animal em tempo recorde. E foi pra lá que o Doutor Pancácio levou os seu animal, sob recomendação:
- Olha, Anfilóquio, cuida dele para mim. Quando estiver curado me procure. É o animal que eu mais gosto e que me leva para atender a minha clientela nas regiões mais distantes.
-Deixa comigo, Doutor. Vou tratar dele como se fosse bicho de minha propriedade.
O tempo rolou e a pisadura cicatrizou, deixando o Castanho em condições de ser cavalgado. Sob recomendação do Anfilóquio foi reparada aquela almofada que descansa sobre o lombo do animal, evitando-se feridas futuras.
O médico procurou o Anfilóquio para liberar o animal para suas andanças para atendimento de sua clientela:
-Olha, companheiro, o Senhor quer dizer que o animal está pronto para qualquer jornada. Fico muito satisfeito e grato pelo trabalho que fez. Cabe agora pagar pelo trabalho de mestre realizado. Quanto lhe devo, além da obrigação, esta impagável?
O Anfilóquio cofiou a barba rala e, olhando fixamente nos olhos do Doutor, asseverou, até com certo orgulho:
- Que é isto, Doutor Pancácio? Olha se vou cobrar de um colega!
O que veio depois não me foi informado.


A EXTREMA-UNÇÃO

            Padre Bertoldo pastoreava as almas humildes de São João das Cabaças. Residia num sítio de cerca de dois alqueires nas adjacências do lugar, propriedade que lhe foi doada por uma beata abastada. Tinha uma vida tranquila, já que o serviço da paróquia era resumido e a vida bucólica que levava era de seu agrado, tendo em vista sua origem rural.
            Entretanto, de uns meses para cá, passou a ter aborrecimentos em sua propriedade bem cuidada. É que uma capivara invadia de quando em vez seu quintal, provocando estragos, destruindo suas bem cuidadas plantações. Combinou com um paroquiano, o Tatão Filóquio, incumbindo-o de dar sumiço no bicho. Tatão era conhecido por apreciar caçadas regadas a muita cachaça e farofas variadas.
            Naquele início de noite chega o Tatão para descapivarar a propriedade do vigário. Capanga de lado com a branquinha de sua preferência e a lata dos comes acompanhando. Conversa vai, conversa vem, ficou combinado que o pároco também participaria da tocaia, com uma espingardinha velha, chumbeira, herança de seu avô. Os preparativos foram interrompidos pela batida de alguém à porta. Era o Percildo, requisitando a presença do religioso com urgência para encomendar a alma de Dona Hermengarda, sua sogra que, segundo informara, estava nas últimas, em sua casinha na entrada da cidade. Aborrecido, relutou. Entretanto a consciência falou mais alto. Era preciso levar o sacramento à candidata a defunta. Deixou lá o Filóquio e foi cuidar de sua obrigação.
            Na casa da moribunda, aflito, teve que esperar um pouco até que desocupassem o quarto onde ela se encontrava, tendo em vista que Dona Caetana preparava a doente, higienizando-a para a recepção ao religioso. A cabeça do vigário estava lá, no seu sítio, sonhando com a exterminação da capivara. Percebeu, que apesar de ter uma alma bondosa e mansa, passara a manter um ranço, uma ojeriza pelas capivaras, que chegava mesmo às raias do ódio. Seu corpo estava na sala da enferma, mas seu espírito estava de tocaia ao animal, juntamente com o Tatão.
            Liberado o quartinho, penetrou o vigário para cumprir o seu dever de pastor.  Desovou as primeiras orações. Seu espírito continuava de tocaia no brejo de sua propriedade, ao lado do caçador. Nisto ouviu-se, ao longe, o estampido de um tiro. O som viera dos lados de seu sítio. Seria o tiro do Tatão. Ainda orando e benzendo a doente, passou a liberar o que invadia o seu espírito anticapivarístico:
            - Morre, desgraçada! Vai para o quinto dos infernos! Pra deixar de ser besta!
            E traçava no ar a mão em forma de cruz ante o corpo da enferma, ainda vociferando:
            - Morre, excomungada! Morre logo, praga ruim! Nunca mais vai comer às minhas custas!
            Voltou a si quando foi arrastado e expulso pelos familiares da doente. Nenhuma explicação posterior justificou seu ato. A doente faleceu naquela mesma noite e deixou uma desconfiança de seu procedimento junto aos familiares.
            A capivara continua lá. O Filóquio errou a mão na cachaça e no tiro.